6.29.2007

Click

Acordou de um pesadelo profundo que teimava em não acabar. Onde cordeiros brancos passeavam nos vastos pastos das dúvidas eternas, saciando lobos famintos, sempre prontos a atacar. Afastando-os do seu olhar, para uma água tépida, sem pé, de planos quase indiferentes.

Percorrera noites sucessivas, sem dormir. Perdera-lhes a conta. Em busca do local secreto onde a lua se apagara. Um chamamento forte, desse brilho algures escondido, em mares nunca navegados, fazia-lhe festas na pele.

Nunca soube, no entanto, o que queria ao certo, e tivera tantas vezes à beira do abismo. De repente, num click sem razão aparente, como tantos desta vida, acordou num local que não era o seu. Apoderado duma mistura de felicidade e tristeza que se dissipavam agora, nítidas numa lenta dança de azeite na água.

Sentiu uma paz quente ao avistar, no alto, a lua pela janela, abraçando cansado o branco infinito da almofada. Amanhã é um novo dia.

6.28.2007

Sorriso perdido

Ganham-se mais batalhas com o sorriso do que com a espada.

William Shakespear


Hoje perdi um sorriso
Voou para longe, assustado.
Afastar vagaroso
no horizonte, pesado

Foi para parte incerta.
Ferido
Talvez escondido
De pancada tão certa

6.27.2007

A escrita

No Palácio Mocenigo onde viveu sozinho
Lord Byron usava as grandes salas
Para ver a solidão espelho por espelho
E a beleza das portas quando ninguém passava

Escutava os rumores marinhos do silêncio
E o eco perdido de passos num corredor longínquo
Amava o liso brilhar do chão polido
E os tectos altos onde se enrolam as sombras
E embora se sentasse numa só cadeira
Gostava de olhar o vazio das cadeiras

Sem dúvida ninguém precisa de tanto espaço vital
Mas a escrita exige solidões e desertos
E coisas que se vêem como quem vê outra coisa

Pudemos imagina-lo sentado à sua mesa
Imaginar o alto pescoço espesso
A camisa aberta branca
O branco do papel as aranhas da escrita
E a luz da vela – como em certos quadros –
Tornando tudo atento

Sophia de Mello Breyner Andersen

6.26.2007

O limo da memória

Trovejava. De repente um relâmpago iluminou toda a sala, deixando qualquer ruído seguinte em suspenso. Ela olhou pela janela e tremeu, sentindo um arrepio de um suspiro misterioso passar-lhe imperceptivelmente pela memória. Percebeu que a janela do corredor estava entreaberta e, apesar do vento, os cortinados magicamente não mexiam. Estacou a dois milímetros e espreitou pela fresta, vendo um vulto de memória passar-lhe diante dos olhos.
Foi então que o vulto obscuro pareceu ganhar forma, como que a levitar com maior nitidez.
Materializou-se finalmente numa forma verde brilhante, a bailar ao vento. Um verde de infância, com sotaque inglês. “Ajude-me.”, dizia ele.
Era fino e escorregadio como um limo e piscava os olhos de pestanas douradas, muito rapidamente, atarantado. A cada pestanejar uma imagem formava-se na sua mente, surgindo diante dos seus olhos, imagens da sua própria vida, correndo em segundos pela sua cabeça, agora com significados que dantes não tinham.
Nem a chuva as distorcia. Nem a chuva, nem as lágrimas do vulto, que eram os écrans onde elas se espelhavam. Lágrimas e chuva misturadas em memórias, agora tão nítidas e aumentadas, como lupas do passado, que revelam tanto.
Todos somos espelhos do passado e há lágrimas que o tempo nunca apaga.


To be continued...


Em colaboração com Andrómeda

6.25.2007

Palavras supérfluas

A cada encontro um pequeno texto. Sempre um pequeno texto. Simples. Complexo. Uma prosa. Um poema. Tanto fazia. Era esse o trato. O cumprimento. A curiosidade. Um condensar de palavras escolhidas meticulosamente e o seu prolongar no silêncio escuro. Como a ecoarem, absorvidas pelos poros sequiosos. Vibrando nas peles coladas, envoltas pelas luzes da cidade adormecida, em sôfregos beijos e quentes carícias.
Na despedida do olhar de sentidos o esgotar do som, guardado no desejo.
As palavras podem ser supérfluas.


6.24.2007

Parede de cal ao sol

Parede de cal ao sol. Era essa a tua luz. Quente ofuscar de fragilidade branca. Simples mas magnética. No teu caminhar descalço, sobre conchas, existiam marés de medo e desejo, que tentavas sempre dissipar em espuma, no azul do céu. Que véu me lançaste? Espessura invisível que me sufoca em odor de chuva. Secando. Brilhando. Numa parede de cal.


6.23.2007

Irish music

Verde
Infinito
Vento
Maldito

Olhos
Fechados
Punhos
Cerrados

Braços
Abertos
Danças,
Afectos

Fogueiras
Celtas
Rochas
Atentas

E uma música
Mágica, no ar
Que tudo envolve
e devolve

6.22.2007

Bon appetite


Passar por idiota aos olhos de um imbecil é um requinte de apreciador de bons petiscos.



Georges Courteline

6.21.2007

Reencontro

A velhice é isto: ou se chora sem motivo, ou os olhos ficam secos de lucidez.

Miguel Torga


Ali estavam finalmente. Um reencontro nunca foi fácil quando tanto se quer.
Tantos anos. Tantos caminhos. Tantos encontros e desencontros. Alegrias e tristezas distantes, sem nunca se perderem nos labirintos da memória.

Ali estavam novamente. Olhos nos olhos, buscando feições perdidas, de outrora, à distância de um abraço. Já agarrados, num silêncio caloroso sobre os ombros, prolongado ao limite não disseram uma única palavra mas ecoou bem alto uma voz conjunta: envelhecemos bem mas tão depressa.

6.20.2007

O quarto em desordem

Na curva perigosa dos cinquenta
Derrapei neste amor. Que dor! Que pétala
Sensível e secreta me atormenta
E me provoca à síntese da flor

Que não se sabe como é feita: amor;
Na quinta-essência da palavra, e mudo
De natural silêncio já não cabe
Em tanto gesto de colher e amar

A nuvem que de ambíguo se dilui
Nesse objecto mais vago do que nuvem
E mais defeso, corpo! Corpo, corpo,

Verdade tão final, sede tão vária,
E esse cavalo solto pela cama,
A passear o peito de quem ama.


Carlos Drummond de Andrade

6.19.2007

Fake plastic tree




Her Green plastic watering can
For her fake Chinese rubber plant
In the fake plastic earth.
That she bought from a rubber man
In a town full of rubber plans.
to get rid of itself.
And It wears her out, it wears her out
It wears her out, it wears her out.

She lives with a broken man
A cracked polystyrene man
Who just crumbles and burns.
He used to do surgery
For girls in the eighties
But gravity always wins.
And It wears him out, it wears him out
It wears him out, it wears him out.

She looks like the real thing
She tastes like the real thing
My Fake Plastic Love.
But I can't help the feeling
I could blow through the ceiling
If I just turn and run
And It wears me out, it wears me out
It wears me out, it wears me out.

And if I could be who you wanted
If I could be who you wanted,
All the time, all the time, ohhh... ohh...


Radiohead

6.18.2007

Memória quase cheia

Queria deixar tudo. Esconder-se nas extensas searas, a perder de vista. Doiradas pelo sol. E bronzear a pele numa camuflagem perfeita. Lentamente. Deitado a olhar as nuvens, nas suas formas magníficas e imprevisíveis. Queria deixar tudo e partir no cantar de pavão colorido. Beleza ferida de asas cortadas e sossegar, na paz de uma árvore de magnólia. Parada no tempo. Queria deixar tudo e adormecer numa noite estrelada. Deixando, descuidado, correr pelas águas límpidas do ribeiro a memória quase cheia. Uma a uma, como folhas secas em direcção ao mar.

6.17.2007

Viver: essa arte fugaz

O Homem vive preocupado em viver muito e não em viver bem, quando afinal não depende dele viver muito mas sim viver bem.


Séneca


6.16.2007

Mistério





O mistério desliza em curvas invisíveis. Esguias e sinuosas. Traçando trajectórias nas esquinas. Réptil imóvel ao sol. Observa sem pestanejar. Ganhando formas na brisa, que se levanta, para logo desaparecer ao olhar.

O mistério é um felino camuflado de noite, caminhando em meias de lã. Tem a leveza dum brilho fosco e o pesar do infinito, oculto. Toca-nos em teias de era para se abrigar num arrepio que fica na pele.

6.15.2007

Porque não soube merecer


Porque não soube merecer a glória, a mais suave
de me deitar a teu lado
e que o sangue a palavra
abolisse a diferença entre o meu corpo e a minha voz
porque te perdi não sei quem sou


Ramos Rosa

6.14.2007

Jealous guy





I was dreaming of the past
And my heart was beating fast
I began to lose control
I began to lose control

I didn't mean to hurt you
I'm sorry that I made you cry
I didn't mean to hurt you
I'm just a jealous guy

I was feeling insecure
You might not love me any more
I was shivering inside
I was shivering inside

I didn't mean to hurt you
I'm sorry that I made you cry
I didn't want to hurt you
I'm just a jealous guy

I was trying to catch your eyes
Thought that you were trying to hide
I was swallowing my pain
I was swallowing my pain

I didn't mean to hurt you
I'm sorry that I made you cry
I didn't mean to hurt you
I'm just a jealous guy



Bryan Ferry sings John Lennon

6.13.2007

Perigos

Dois perigos ameaçam constantemente o mundo: a ordem e a desordem.

Paul Valéry


6.12.2007

Florir em verso de seda branca

Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que a minha boca tem pra te dizer!
São talhados em mármore de Paros
Cinzelados por mim pra te oferecer.

Têm dolências de veludos caros,
São como sedas brancas a arder...
Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que foram feitos para te endoidecer!

Mas, meu Amor, eu não tos digo ainda...
Que a boca da mulher é sempre mais linda
Se dentro guarda um verso que não diz!

Amo-te tanto! e nunca te beijei...
E, nesse beijo, Amor, que eu te não dei
Guardo os versos mais lindos que te fiz!


Florbela Espanca

6.11.2007

Workout completed

I am addicted
«Beginning workout»
I've collected footsteps before dawn
Seen places I never knew existed
Ran to the moon and back
Being a Rabbit for the neighbourhood dogs
Obeyed the voice in my head
Let music carried me when I couldn’t
Raced against yesterday
Let the world be my witness
Measure myself in meters, kilometres, and finally, character
I plugged into a bigger propose
Let this world and came backed changed
«Workout completed»
I am addicted

anúncio Nike iPod



Saio para correr como quem foge. Corro do mundo alcançando outros. Percorro espaços no tempo e os espaços do tempo. Numa viagem de curvas sinuosas. Sem percurso. Sem destino. Percorro memórias esquecidas, alcanço lugares que já não me lembrava. Que nunca conhecera. Incríveis. Lugares inimagináveis.

Corro até aos limites, num processo de observação acelerado, onde segundos parecem séculos e segredos se desvendam na magia envolvente da música, fiel companheira.

Não corro muitos quilómetros mas percorro distâncias inimagináveis. Cansado respiro fundo. Workout completed…

6.10.2007

Crash




A vida é um desenrolar de acidentes. Sucedem-lhe em catadupa, com mais ou menos amolgadelas. Graves, inofensivos, longos ou fugazes, por mais imperceptíveis, influenciam sempre um acontecimento futuro. Apenas indefinidos no tempo ou no espaço. Num contínuo misterioso de causa ou consequência.
É muito interessante tentar prever um acidente. O seu bater de asas de borboleta e terramoto associado.

6.09.2007

Solidão

Cortaram os trigos. Agora
A minha solidão vê-se melhor.

Sophia de Mello Breyner Andersen


6.08.2007

Conheces todos os teus sentimentos?

Submergidos deste mundo num mar denso, olhámo-nos, por vezes, tão próximos. Na distância dum eco de búzio. Num silêncio tocante apurámos sentidos, trocámos segredos, levantámos pó de estrelas, cristalizando-os numa espécie de afectos, em sais. Frágeis, talvez. Mas intensos.

No nosso mergulho interior misturámos pedaços de céu com danças de lobos. Impacientes. Mantendo sempre o hiato de dois braços esticados, sem se tocarem. No entanto, sumo, perfume subtil e envolvente. Numa lava descendo o cume reservado do receio. Unindo, na sua passagem, pontos magnéticos. Invisíveis. Inexplicáveis.

Reservámo-nos um local desconhecido, repleto de sombras. Por inventar. Guiado por letras e sinais, construído na lentidão subtil da brisa, que chama sem se ouvir.

No silêncio submerso do nosso mundo que grita finas lâminas de inquietude nasceu uma ponte de neve. Branca ao olhar. Encurtando respostas às nossas dúvidas escorregadias.

Não tenhas medo de desvendar os murmúrios que nos chegam embrulhados, que cada um interpreta à sua maneira. Ouves?

Um bule de chá imaginário apita no vapor que podemos trocar de alma, por instantes. Sem porquês. Tenho a mão aberta pois talvez nos possamos ajudar. Conheces todos os teus sentimentos?


6.06.2007

Corpo

Se eu pudesse as minhas mãos faziam parte do teu corpo para sempre

Pedro Paixão


Os corpos encostados contra a parede. Um corpo sempre se molda a outro corpo. O corpo é um livro sagrado. Aberto, à espera de uma mão que estrangula o desejo. No esvoaçar de gemidos, entrelaçados. Nas bocas. O peso dos corpos esmaga o tempo em suor.

Trepadeiras de dedos, cabelos, sexos, lábios misturam-se na dormência desordenada de sentidos. Sem regras. Sem destino. Apenas entrega à dança dos corpos.

Os corpos deitados no chão. Um corpo sempre descansa noutro corpo, embalado na magia do quente do corpo a dissipar-se, pouco a pouco. Na lentidão do tempo que desperta.

6.05.2007

A força do destino



Se todos somos pó de estrelas do universo teremos em nós genes dum destino desenhado no carvão do tempo? Explicando coincidências e deja vus que se desenrolam do emaranhado novelo de ADN que nos liga numa teia invisível.

6.04.2007

Multas 2 Paciência 0

Detesto estar parado. Deve ser a razão para me estarem sempre a multar por estacionamento. Como que num aviso celestial. Vossa Exa. veio a este mundo com a missão de circular e observar, consequentemente aceite esta oferenda divina com muita dedicação e carinho. Deve ser a paga para a maldita curiosidade que me atormenta. Tudo se paga neste mundo, é mesmo verdade, meus caros. Por isso, toca a circular e já agora, se possível, a pé.

6.03.2007

White light


White light
White light
White light
What intentions have your screaming rays?
Calling me or moving me away?
Reveal or hide your secret message?

White light
I love your drops of silence in my skin
Questioning what paths do you hide beyond your beat of winds?

6.02.2007

Teardrop on the fire




Love, love is a verb
Love is a doing word
Fearless on my breath
Gentle impulsion
Shakes me makes me lighter
Fearless on my breath

Teardrop on the fire
Fearless on my breath

Nine night of matter
Black flowers blossom
Fearless on my breath
Black flowers blossom
Fearless on my breath

Teardrop on the fire
Fearless on my breath

Water is my eye
Most faithful mirror
Fearless on my breath
Teardrop on the fire of a confession
Fearless on my breath
Most faithful mirror
Fearless on my breath

Teardrop on the fire
Fearless on my breath

Stumbling a little
Stumbling a little


Massive Attack


Na tristeza ou alegria, saudade ou projecto futuro há sempre algo de mágico no fogo duma lareira...

6.01.2007

Amora morena

A tempestade de areia parecia ter aumentado à chegada. Exaustos, da longa caminhada, tinham vencido o deserto inóspito. Um calor abrasador, de delírios dantescos, escorria pelos corpos bronzeados. Avistava-se, a custo, a entrada do templo. Imponente.

À medida que entravam um silêncio profundo entranhava-se nos ossos, protegido do exterior por espessas pedras alinhadas, corroidas pelo tempo. Os animais assustados recusaram entrar. Já a pé avançaram pequenos e observados por figuras gigantes de Deuses animais. Tudo parecia colocado a régua e esquadro, no local exacto, como se não existisse alternativa possível, na imensidão de hieróglifos espalhados pelas paredes.

Olhando em redor, abandonado pelos membros da equipa, que se concentravam num par de sarcófagos de tonalidade turquesa e dourada, presentia que o maior tesouro não estava ali. Sentia-o desde a chegada. Fechava os olhos e era como se voasse algo em seu redor. Beleza colorida em movimento, deixando um perfume indiscritível.

Abriu os olhos, de repente, com a passagem de um escaravelho que avançava lentamente, como que à sua espera. Seguiu-o, dirigindo-se para um recanto mais escuro, quase invisível ao olhar. À medida que se aproximava o aroma era cada vez mais intenso. Laivos de Sol ansiosos e uma tranquilidade de Nilo correndo para si.

Na total escuridão esticou a mão e sentiu uma folhagem alta. Invisível, de textura aveludada. Percorrendo-a numa caricia fecunda, parou num pequeno fruto carnudo. Ao arrancá-lo, trazendo-o para a luz, uma pequena amora morena surgia inocente mas sábia. Numa trajectória de astro colocou-a na boca. Ao trincá-la todo o templo estremeceu de cor. Deuses dançando aos ventos do Suão. Mil séculos de saberes ancestrais giraram num segundo. Sementes brotaram, nas margens férteis do Nilo e árvores cresceram em pássaros. Morte e nascimento de mãos entrelaçadas. Faraós e multidões de sentidos. Nunca sentidos.

Amora morena sabes-me bem. Tu tens um cheiro, que mais ninguém tem.


Inspirado numa música do Jorge Palma dedicado a uma escaravelha que se esconde sempre no escuro

Assíduos do shaker

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