1.31.2007

Mar

Não é nenhum poema
o que vos vou dizer
Nem sei se vale a pena
tentar-vos descrever
O mar
O mar

E eu aqui fui ficando
só para O poder ver
E fui envelhecendo
sem nunca O perceber

O Mar
O Mar


Madredeus

1.29.2007

O Homem folha

O Homem folha vivia num mundo onde existiam estações. Não de comboios. Mas onde Primavera, Verão, Outono e Inverno não constavam apenas no dicionário.
Um mundo de consciências translúcidas, educação verdejante e icebergs sólidos de valores.
Um mundo de conservadores-recebedores em vez de poluidores-pagadores.
Um mundo onde se andava a pé, fazendo o caminho caminhando. Na lentidão harmoniosa do saber esperar para colher.
Um mundo com pandas, tigres da Sibéria, rinocerontes negros e com políticos mesquinhos em vias de extinção.
Um mundo onde a política agrícola comum não era sinónimo de fome e indiferença comum.
Um mundo não de minutos verdes mas de verdes anos.
Um mundo reciclado de reciclagens consumistas.
Um mundo não de petróleo viscoso mas de água cristalina.
Um mundo sem ozono, radiações ou CO2 mas com lufadas de oxigénio para as crianças.
Um mundo sem inundações, secas, fogos e chuvas ácidas mas com tsunamis de esperança num futuro melhor.
O Homem folha não existe. Mas em breve talvez não exista também Homem nem folhas. Lembremos portanto o Homem folha.

1.27.2007

Poesia matemática

Às folhas tantas
Do livro matemático
Um Quociente apaixonou-se
Um dia
Doidamente
Por uma Incógnita.
Olhou-a com seu olhar inumerável
E viu-a, do Ápice à Base,
Uma Figura Ímpar;
Olhos rombóides, boca trapezóide,
Corpo octogonal, seios esferóides.
Fez da sua
Uma vida
Paralela à dela
Até que se encontraram
No Infinito.
"Quem és tu?" indagou ele
Com ânsia radical.
"Sou a soma dos quadrados dos catetos.
Mas pode me chamar de Hipotenusa."
E de falarem descobriram que eram
- O que, em aritmética, corresponde
A almas irmãs -
Primos-entre-si.
E assim se amaram
Ao quadrado da velocidade da luz
Numa sexta potenciação
Traçando
Ao sabor do momento
E da paixão
Rectas, curvas, círculos e linhas sinoidais.
Escandalizaram os ortodoxos das fórmulas euclidianas
E os exegetas do Universo Finito.
Romperam convenções newtonianas e pitagóricas.
E, enfim, resolveram se casar
Constituir um lar.
Mais que um lar,
Uma perpendicular.

Convidaram para padrinhos
O Poliedro e a Bissetriz.
E fizeram planos, equações e diagramas para o futuro
Sonhando com uma felicidade
Integral
E diferencial.
E se casaram e tiveram uma secante e três cones
Muito engraçadinhos
E foram felizes
Até aquele dia
Em que tudo, afinal,
Vira monotonia.
Foi então que surgiu
O Máximo Divisor Comum
Frequentador de Círculos Concêntricos.
Viciosos.
Ofereceu-lhe, a ela,
Uma Grandeza Absoluta,
E reduziu-a a um Denominador Comum.
Ele, Quociente, percebeu
Que com ela não formava mais Um Todo,
Uma Unidade. Era o Triângulo,
Tanto chamado amoroso.
Desse problema ela era a fracção
Mais ordinária.
Mas foi então que o Einstein descobriu a Relatividade
E tudo que era espúrio passou a ser
Moralidade
Como, aliás, em qualquer
Sociedade.

Milôr Fernandes


E ainda dizem que a matemática é uma ciência exacta...

1.26.2007

Dream land

Puxou o lençol cobrindo-se totalmente. Na total escuridão surgiu um pequeno ponto. Uma luz estranha, ténue, pequena, mas aspirando-o em espiral, como um remoinho.
Desaguou nas profundezas oceânicas em manta gigante, agitando as águas no seu bailado imponente. No seu lento avanço, como que sorvendo o tempo, um horizonte de infinito fez-se porta, para sair em voo de condor, planando sob uma paisagem deslumbrante, no silêncio dos céus. E na corrente de ar quente, baixou, a pique, em Pégaso branco a galope veloz numa encosta verde e escarpada de castelo escocês.
Acordou com um brilho ofuscante que, aos poucos, se transformou num escuro familiar. Sentia-se em paz, com umas leves dores nos braços.

1.25.2007

Mistério de Sintra

"Há quem passe pelo bosque e apenas veja lenha para a fogueira"

León Tolstoi

Bela. Sedutora. Mágica. Envolvente. Murmúrio de luz em neblina silenciosa.
Vontade de ser folha na brisa que esbate um segredo. Algo camuflado se esconde ao olhar, estando sempre presente. Como que adivinha irónica ao longo dos tempos.
Sintra é uma menina de vestido branco, sentada numa pedra fria, que me sussurra ao ouvido e fascina, sempre que nela passo.

1.24.2007

Corpo de palavras

Escreveu-a junto a si. No próprio corpo para que nunca se separassem. Foi difícil escolhe-la, entre tantas. E fê-lo com a solenidade litúrgica de algo sagrado, com uma caneta de aparo. Cedo percebeu porém que era impossível ficar por ali. Amava-as a todas. Pelo som, imagem, sabor. Pela força, poder, textura ou quente languidez.
Começou a colecciona-las, uma a uma, lentamente, junto a si.
Na angústia de saber que tal teria um limite, um fim perguntava-se a si própria – será possível apaixonarmo-nos pelas palavras?

1.22.2007

Lágrima de preta

Apeteceu-me dar um ombro e um soco. Apenas dei dois olhares: um de conforto, outro de indignação. Como é possível ainda sermos tão atrasados?

Encontrei uma preta
que estava a chorar,
pedi-lhe uma lágrima
para a analisar.

Recolhi a lágrima
com todo o cuidado
num tubo de ensaio
bem esterilizado.

Olhei-a de um lado,
do outro e de frente:
tinha um ar de gota
muito transparente.

Mandei vir os ácidos,
as bases e os sais,
as drogas usadas
em casos que tais.

Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu-me o que é costume:
nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de sódio.

António Gedeão

1.21.2007

In my secret life




I saw you this morning.
You were moving so fast.
Can’t seem to loosen my grip
On the past.
And I miss you so much.
There’s no one in sight.
And we’re still making love
In My Secret Life.

I smile when I’m angry.
I cheat and I lie.
I do what I have to do
To get by.
But I know what is wrong,
And I know what is right.
And I’d die for the truth
In My Secret Life.

Hold on, hold on, my brother.
My sister, hold on tight.
I finally got my orders.
I’ll be marching through the morning,
Marching through the night,
Moving cross the borders
Of My Secret Life.

Leonard Cohen

1.20.2007

Janela indiscreta

Abriram-se janelas em nós e a luz nunca mais foi a mesma. Ganhou uma matéria invisível, de textura magnética, que envolvia a pele numa dança de chama embevecida.
Apenas o mundo exterior mudara para tonalidades mais tépidas, de sépia. Ofuscado, confuso, atraído como insecto para a janela indiscreta.

1.19.2007

Já não é hoje ?
não é aquioje?

já foi ontem?
será amanhã?

já quandonde foi?
quandonde será?

eu queria um jàzinho que fosse
aquijá
tuoje aquijá.


Alexandre O'Neill

1.18.2007

Perdido no meio do mar

Alegre triste meigo feroz bêbedo
lúcido
no meio do mar

Claro obscuro novo velhíssimo obsceno
puro
no meio do mar

Nado-morto às quatro morto a nada às cinco
encontrado perdido
no meio do mar
no meio do mar

Mário Cesariny

1.17.2007

Banco de jardim

If you ever feel like something's missing
Things you never understand
Little white shadows sparkle and glisten
Part of a system, a plan

Coldplay


Sentia-se estranhamente confusa. Confusa e sem chão, como se lhe falta-se o pé. No deserto sem bússula, a precisar de um narrador para lhe enquadrar o passo seguinte. Um vazio pastoso com um ténue incenso a tristeza apoderara-se de si, vagarosamente, sem se aperceber. Ora vindo ora partindo, numa maré. Mas desta vez ficara, nítido, quase insuportável.

Era linda, duma alegria contagiante. Admirada profisionalmente e desejada aos olhares. Inteligente, lutadora, sempre conseguira o que que queria. Uma vida perfeita, de conto de fadas, agora na maldição do sentimento de falta de algo, tendo tudo.

Foi encontrada, por um menino, num banco do jardim, coberta com pétalas de jacarandás. Ao que consta a sorrir.

1.16.2007

Sereias

Vêm morrer à praia e são jovens
as sereias;
jovens como andar à chuva,
a brusca melancolia,
o lume aceso da cal;
jovens como as baladas escocesas
ou as molhadas sílabas de Junho;
e com a lua nova
vêm morrer no areal.

Eugénio de Andrade

1.15.2007

Miragem

"Devido ao facto da velocidade da luz ser superior à do som muitas pessoas parecem inteligentes até falarem"


Falou e tudo embaciou
Espelho de gelo
em pedaços se quebrou,
Calor? nem vê-lo

Há coisas que nem se pensam
outras que se sentem
Mentes que brilham
e miragens que mentem

1.14.2007

In your blue room

It's time to go again
To your blue room
Got some questions to ask of you
In your blue room
The air is clean
Your skin is clear
I've had enough of hangin' round here
It's a different kind of conversation
Your blue room

Saw me calling love, somewhere deep inside
Saw me calling you, somewhere

And time is a string of pearls
Your blue room
See the future just hanging there
Your blue room
And you crave
A new perspective
Looking down on my objectives
New instructions
Whatever their directions
Your blue room

It's alright
Your blue room
One day I'll be back
Your blue room
Yeah, I hope I remember where it's at
Your blue room

See me slide
Won't you take me back there
So much fun to me

Zooming in
Zooming out
Nothing I can do about
A lens to see it all up close
Magnifying what everybody knows
Never in conflict
Never alone
No car alarm
No cellular phone


U2

1.13.2007

O segredo

Vou contar-vos um segredo. Mas, por favor, não contem a ninguém. Deixaria de o ser e tornaria estas linhas desactualizadas. É mau estar desactualizado, não concordam? E são tão raros os segredos nos dias que correm... Guardem este e não se fala mais nisso.

Ora o segredo é que fui uma temporada para Plutão. Sim, Plutão.
Não acharam estranho aquela história de deixar de ser planeta? Fui eu pronto, desculpem! Uma mentirazita inocente também não faz mal a ninguém, quando em prole de alguma tranquilidade. Para além de que, ninguém lhe ligava. Agora então perdeu toda a atenção e proporcionou-me um merecido descanso. Precisava de viajar para bem longe e não gosto de espaços muito grandes. Foi o destino perfeito.

Um bocado frio, é certo, mas nada que uma lareira não resolva. De resto recomendo: três luas, pouca gente, dias mais longos e até foi baptizado por uma menina que se interessava por mitologia clássica sugerindo o nome romano equivalente ao Hades grego. Sabiam? Nada mais apropriado, Hades em grego significa invisível. Não se esqueçam, mantenham o segredo.

1.12.2007

Curiosidade

Vou viver
até quando eu não sei
que me importa o que serei
quero é viver

Amanhã, espero sempre um amanhã
e acredito que será
mais um prazer

a vida é sempre uma curiosidade
que me desperta com a idade
interessa-me o que está para vir
a vida em mim é sempre uma certeza
que nasce da minha riqueza
do meu prazer em descobrir

encontrar, renovar, vou fugir ou repetir

António Variações

1.11.2007

Separação

De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.

De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama.

De repente, não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente.

Fez-se do amigo próximo o distante
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente


Vinicius de Moraes

1.10.2007

Reencontro

Escondida no tempo revi-te, num breve momento, inesperadamente, como um acidente.
Gostei de te ver estática apressada, mas sobretudo do sorriso, o tal que ilumina salas.
A chuva não deixou levantar poeira, apenas abrandou como nós.
Depois falamos...

1.09.2007

Um oceano para lavar as mãos

Se a noite não tem fundo
O mar perde o valor
Opaco é o fim do mundo
Pra qualquer navegador
Que perde o oriente
E entra em espirais
E topa pela frente
Um contingente
Que ele já deixou pra trás
Os soluços dobram tão iguais
Seus rivais, seus irmãos
Seu navio carregado de ideais
Que foram escorrendo feito grãos
As estrelas que não voltam nunca mais
E um oceano pra lavar as mãos

Edu Lobo

1.08.2007

Mecenas do nunca tentado

"Uma das grandes lições da vida é que os tolos às vezes estão certos"

Winston Churchill


Erre e volte a errar
Nunca desista
sem antes tentar.
Vibre. Persista

Sorria ao impossível
pois nunca é tarde para sonhar
Tudo é simples, exequível
Basta apenas acreditar

Troque verdades absolutas
pelas coisas mais loucas
e aos derrotistas
faça orelhas moucas

Pisque o olho ao nunca tentado
Vá em frente. Exprimente,
Seja ousado
mas nunca indiferente

E já agora, não fique apenas
neste mundo cinzento
Divirta-se como mecenas
em todo e cada momento

1.07.2007

Música

Escolhi a música para entrar em ti
invadindo os teus sentidos
numa onda a enrrolar
Vagarosa, quase muda
adiando seu rebentar violento.

Misturei-me no teu ser
num bater de asas
dissipando um calor aveludado
Arrepiu de olhos fechados
permanecendo em búzio

Há músicas que perduram

1.06.2007

O teu peito

O desenho
redondo do teu seio
Tornava-te mais cálida, mais nua
Quando eu pensava nele...Imaginei-o,
À beira-mar, de noite, havendo lua...

Talvez a espuma, vindo, conseguisse
Ornar-te o busto de uma renda leve
E a lua, ao ver-te nua, descobrisse,
Em ti, a branca irmã que nunca teve...

Pelo que no teu colo há de suspenso,
Te supunham as ondas uma delas...
Todo o teu corpo, iluminado, tenso,
Era um convite lúcido às estrelas....

Imaginei-te assim á beira-mar,
Só porque o nosso quarto era tão estreito...
- E, sonolento, deixo-me afogar
No desenho redondo do teu peito...

David Mourão Ferreira

1.05.2007

Corpo envolto de mar

O mar – sempre que toco
um corpo é o mar que sinto
onda a onda
contra a palma da mão.
Vésper está agora
tão próxima que já não posso
perder-me naquela infatigável
ondulação.
Eugénio de Andrade

1.04.2007

Demónios interiores

Sentei à minha mesa
os meus demónios interiores
falei-lhes com franqueza
dos meus piores temores

Tratei-os com carinho
pus jarra de flores
abri o melhor vinho
trouxe amêndoas e licores

Chamei-os pelo nome
quebrei a etiqueta
matei-lhes a sede e a fome
dei-lhes cabo da dieta

Conheci bem cada um
pus de lado toda a farsa
abri a minha alma
como se fosse um comparsa

E no fim, já bem bebidos
demos abraços fraternos
de copos bem erguidos
brindámos aos infernos
saíram de mansinho
aos primeiros alvores
fizeram-se ao caminho
sem mágoas nem rancores

Adeus, foi um prazer!
disseram a cantar
mantém a mesa posta
porque havemos de voltar


Jorge Palma

1.03.2007

Tempo

Pendurado no tempo toquei o deserto areoso do óbvio para me vir perder em mares de impossíveis. A relatividade do tempo é sobretudo o que dele fazemos.

1.02.2007

Femme

Meia lua
Desnudada
Seda, noite estrelada

Lago de fogo
Papiro de mil cores
Flores

Curvas perfeitas
Cume, Evareste
Algures em céu celeste

Mãe, criança, amante
Espumante. Femme
Je t’aime

1.01.2007

Pele


Quem foi que à tua pele conferiu esse papel
de mais que tua pele ser pele da minha pele


David Mourão Ferreira


Assíduos do shaker

LinkWithin

Blog Widget by LinkWithin