10.24.2012

Devagar



O poder das imagens e do silêncio sempre me hão-de surpreender. Puxam-nos, o olhar para fora de pé, e por vezes, sem que nos apercebamos ficam presos à roupa num alfinete invisível. Palpitam-nos por detrás das pálpebras, num sonho ou num gesto que nos lembra algo que ainda não vivemos mas que sabemos nosso, algures ou adiante, sentindo-o a puxar uma malha e a tilintar uma história ao cair no chão. Chegam a ter banda sonora: dum nocturno de Chopin a uma PJ Harvey a arranhar a sua voz numa guitarra, segundos infinitos, ao encontro de uma lua qualquer. Hoje acordei com uma buganvilia invisível, enrolada e pedalei, devagar. 

10.13.2012

Vida[s]

O que é afinal a vida? O que é? O que foi? O que será ou pode vir a ser? Numa vida há muitas vidas, próprias, alheias, presentes, passadas e futuras. Numa vida há muitos estados, estágios, coisas importantes e pequenas coisas que pareciam insignificantes na altura e que no entanto ficam presentes por toda uma vida. Uma pedra no meio de um bosque distante onde nos sentámos um dia e nunca mais regressámos a um pensamento que foi só nosso, um sorriso, uma noite límpida, um livro devorado pela noite dentro, um dia de sol. Um poema amarrotado, uma garrafa partilhada na companhia de amigos. Um beijo roubado, uma carícia. Um abraço apertado, uma vitória suada, uma corrida terminada. Um desgosto de amor. Um observar o mundo que nos rodeia, um grito do Ipiranga, uma noite ao relento com céu estrelado. Fotografias gravadas na memória. Um livro escolhido a dedo, dedicado. Uma refeição cozinhada com carinho. Uma piada inteligente recebida ao acaso. O amor de uma mãe. O entregar do coração, do corpo, do mais fundo que existe em nós. O adormecer de um filho que se observa horas a fio. O viajar porque é preciso, o regressar porque te amo. O partir de um vidro com a mão. A dor que se guarda sem transparecer. A surpresa, a descoberta. As saudades de quem partiu. Os lugares secretos onde se gosta de regressar de quando em vez. As cartas escritas deixadas na gaveta. O cão, o gato. Uma frase lida que se sente nossa. A exposição que nos deixa imóveis. Os arrepios. O mar que nos ondula, a chuva na pele. O começar de novo. O que não se esquece. O momento irrepetível, o déjà vu. O mistério da própria vida, o deserto, a multidão. Uma casa de pedra com uma árvore no telhado. O caminho sinuoso, o guiar de noite. O velho blusão de pele, a T-shirt branca. Uma música nova que mexe comnosco. Um piano afinado a ecoar pela sala. A 7ª Sinfonia do Beethoven a estremecer. O cálice meio cheio e o outro meio vazio. A esperança roubada. A vontade de tentar de novo. Os teus pés frios a procurar os meus. O barulho da fogueira ateada. O movimento de uma anémona no aquário azul de perder de vista. O balão de ar quente a levitar do mundo. As rugas que sempre hão de contar uma história. As minhas mãos nas tuas, o teu pescoço. Um nome antigo, que já não existe. A sonoridade de certas palavras. O dois cavalos amarelo com a capota aberta e a areia da praia espalhada pelo tapete. Um cigarro no pátio das buganvilias. O pássaro que vinha de noite bater à janela. O colega da primária que morreu de overdose muitos anos depois de o saber. Um olhar em silêncio, meros segundos tornados horas. Os dedos minúsculos apertados no nosso dedo. O teu respirar. O sabor das cerejas, as castanhas quentes a queimar as mãos. O ovo estrelado às altas horas da noite e os ovos mexidos ao pequeno almoço. O dormir todo nu. O adormecer exausto, o acordar dum novo dia. O meu irmão miúdo a correr do enxame de vespas depois ao ir buscar a bola. O carro velho coberto de figos maduros atirados de cima da árvore. Os passeios infindáveis com o Avô. A palavra sincera mas mal medida. A crítica construtiva. O pensamento livre. O que é a vida afinal? Há muitas vidas dentro de uma vida. O que será que está ainda por vir?

* Pela primeira vez sem imagens por ter tantas [mais as que aqui não estão]   

10.04.2012

Whish[list]


Queria uma "pão de forma" assim, velhinha velhinha, para pintar de azul do céu e correr mundo.

Black cat


Há dias que nos desiludem. Deixam-nos estranhos, ao abandono do corpo que não sentimos mais nosso. Ali, de dedos cortados rentes para o mundo. E uma espécie de bando de pássaros negros, teimando em nos asfixiar de qualquer poema, de qualquer melodia, num frenesim indecifrável. Há dias que nos desiludem. Que puxam o som para baixo de água, entregando aos lábios um eco vasto, vazio. Deixando nos rostos uma nitidez mais pálida, lenta, quase fotográfica. Ali, diante dos olhos calados na sombra, observando o corpo de fora, como um fantasma que já partiu. Algures, distantes, como uma doença que não se sabe ter mas ficou.

Assíduos do shaker

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