Passou a ter um narrador na cabeça, que lhe descrevia o mundo numa voz pausada e vagarosa. Uma voz sedutora e amena que passara a fazer parte de si e o fizera quase renunciar à sua própria. Proferia cada vez menos palavras. Preservava-as na sua essência frágil. Escolhia-as a dedo, delicadamente consciente da sua vida fugaz.
Passou a ser visitado por essa voz que lhe explicava com mais nitidez certos momentos que eternizava como fotos. Esculturas gravadas na pedra da memória que gostava de preservar para sempre. Passara a viver na profundidade dos olhares e no silêncio dos livros. Mergulhado, numa delicada distância oceânica. Vasta mas límpida e cristalina.
Uma pessoa devia poder ser apresentada pela sua biblioteca, pensava [ele que ainda não tinha tido o tempo devido ou o engenho necessário para organizar convenientemente esses pedaços de alma que deixava espalhados ao acaso, por vários lugares]. Poupava-nos tanto tempo sermos vistos apenas assim, sem generalizações ou fáceis clichés, e no fundo, está lá realmente tanto de nós espelhado.
Relia certos livros que lhe passaram pelas mãos talvez cedo demais. Livros que o apaixonaram pelo som e pelo movimento das palavras na língua, mas ainda desprovido do pó da idade. Para lhe poderem assentar, mais fiéis. Um livro relido, com o peso do tempo, nunca é o mesmo. Evolui, como um vinho que precisa de envelhecer para maturar e ganhar corpo.
Cansara-se dum mundo que apenas evoluía cientifica e tecnologicamente, mas que, no fundo, parara no conhecimento do Homem e do sentido da vida. Não se sabe mais agora que um sábio de há vinte mil anos atrás. Via em certos textos milenares mais verdade e conhecimento sobre a profundidade humana que actualmente. Raramente se encontra isso no mundo actual.
Começava a habituar-se a essa voz oculta mas sempre presente dentro de si. Desconhecida e preservada do mundo. Oferecia a algumas pessoas de quem gostava quase dolorosamente alguns dos seus livros predilectos [o melhor que se pode oferecer, estava em crer]. Algumas pessoas que amava continuadamente como um rio, apesar dos percursos sinuosos da vida, mas passara apenas a corresponder-se, com elas, por livros. Livros usados, gastos pelas mãos. Com uma breve dedicatória e muitas anotações em certas passagens.
Esperava poder dizer-lhes, um dia pessoalmente: É a tua cara. É como te sinto e te continuo a ver no pensamento [talvez até com o calor de uma carícia ou um beijo adiado]. Dizia-lhes com a tal voz silênciosa e um olhar despido de tudo, sem barreiras. Dizia-lhes com a tal voz que dispensa todas as palavras.
3 comentários:
"Um livro é um deserto com vozes."
António Lobo Antunes
No mesmo livro, numa outra leitura, num outro momento...me perco para me encontrar...
Bjs
R.
Relia certos livros que lhe passaram pelas mãos talvez cedo demais. Livros que o apaixonaram pelo som e pelo movimento das palavras na língua, mas ainda desprovido do pó da idade. Para lhe poderem assentar, mais fiéis. Um livro relido, com o peso do tempo, nunca é o mesmo. Evolui, como um vinho que precisa de envelhecer para maturar e ganhar corpo.
quantas vezes já me aconteceu...
penso que já te tinha dito :)
Enviar um comentário