7.04.2009

O que mora por detrás do discurso

Passou a ter um narrador na cabeça, que lhe descrevia o mundo numa voz pausada e vagarosa. Uma voz sedutora e amena que passara a fazer parte de si e o fizera quase renunciar à sua própria. Proferia cada vez menos palavras. Preservava-as na sua essência frágil. Escolhia-as a dedo, delicadamente consciente da sua vida fugaz.

Passou a ser visitado por essa voz que lhe explicava com mais nitidez certos momentos que eternizava como fotos. Esculturas gravadas na pedra da memória que gostava de preservar para sempre. Passara a viver na profundidade dos olhares e no silêncio dos livros. Mergulhado, numa delicada distância oceânica. Vasta mas límpida e cristalina.

Uma pessoa devia poder ser apresentada pela sua biblioteca, pensava [ele que ainda não tinha tido o tempo devido ou o engenho necessário para organizar convenientemente esses pedaços de alma que deixava espalhados ao acaso, por vários lugares]. Poupava-nos tanto tempo sermos vistos apenas assim, sem generalizações ou fáceis clichés, e no fundo, está lá realmente tanto de nós espelhado.

Relia certos livros que lhe passaram pelas mãos talvez cedo demais. Livros que o apaixonaram pelo som e pelo movimento das palavras na língua, mas ainda desprovido do pó da idade. Para lhe poderem assentar, mais fiéis. Um livro relido, com o peso do tempo, nunca é o mesmo. Evolui, como um vinho que precisa de envelhecer para maturar e ganhar corpo.

Cansara-se dum mundo que apenas evoluía cientifica e tecnologicamente, mas que, no fundo, parara no conhecimento do Homem e do sentido da vida. Não se sabe mais agora que um sábio de há vinte mil anos atrás. Via em certos textos milenares mais verdade e conhecimento sobre a profundidade humana que actualmente. Raramente se encontra isso no mundo actual.

Começava a habituar-se a essa voz oculta mas sempre presente dentro de si. Desconhecida e preservada do mundo. Oferecia a algumas pessoas de quem gostava quase dolorosamente alguns dos seus livros predilectos [o melhor que se pode oferecer, estava em crer]. Algumas pessoas que amava continuadamente como um rio, apesar dos percursos sinuosos da vida, mas passara apenas a corresponder-se, com elas, por livros. Livros usados, gastos pelas mãos. Com uma breve dedicatória e muitas anotações em certas passagens.

Esperava poder dizer-lhes, um dia pessoalmente: É a tua cara. É como te sinto e te continuo a ver no pensamento [talvez até com o calor de uma carícia ou um beijo adiado]. Dizia-lhes com a tal voz silênciosa e um olhar despido de tudo, sem barreiras. Dizia-lhes com a tal voz que dispensa todas as palavras.

3 comentários:

um perfeito estranho disse...

"Um livro é um deserto com vozes."

António Lobo Antunes

Anónimo disse...

No mesmo livro, numa outra leitura, num outro momento...me perco para me encontrar...
Bjs
R.

© disse...

Relia certos livros que lhe passaram pelas mãos talvez cedo demais. Livros que o apaixonaram pelo som e pelo movimento das palavras na língua, mas ainda desprovido do pó da idade. Para lhe poderem assentar, mais fiéis. Um livro relido, com o peso do tempo, nunca é o mesmo. Evolui, como um vinho que precisa de envelhecer para maturar e ganhar corpo.

quantas vezes já me aconteceu...
penso que já te tinha dito :)

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