6.19.2009

O escritor imóvel (revisitado)

Permanecia imóvel, apenas respirando. Abrindo e fechando os olhos esponjosos. Atentos. Sentindo o sangue, em constante viagem. A mando de algo ou de alguém [estranho, ter tantas coisas dentro de nós que não se comandam. Que não ordenamos. Que, tantas vezes nem damos por elas].

O cansaço a ocupar-lhe os cantos. Todos os espaços. Um navio pesado a ondular na respiração. A conquistar território, como uma droga a alastrar. Um cansaço aquático, submergindo o corpo estanque, com a alma aprisionada. Fechada. Sem fuga possível.

Não lhe resistia. Podia escapar-lhe facilmente, num simples movimento. Numa acção. Mas não. Não lhe apetecia. Permanecia imóvel, olhando apenas o deslizar das sombras, as sonoridades das coisas. O conteúdo que habita dentro do vazio.

O tédio de tudo ter feito ou podido fazer. Sem nunca lhe chegar. A alegria fugaz das coisas simples. A insuportável sensação de nada desejar. A solidão estranha num mar de gentes. Num mundo cada vez mais distante. Uma ilha que fizera sua. Afastando o outrora próximo: pessoa a pessoa, lugar a lugar. Uma amarra que se soltara de vez, para não mais se conseguir agarrar. A nada. A ninguém. Um barco à vela sem direcção.

Permanecia imóvel abandonando os enganos das palavras, apreciando apenas o seu som e movimento [todos se enganam com frases feitas. Oferecidas aos outros e a si próprios. Com mais ou menos confortos. Com mais ou menos alentos. Falsas fés. Esperanças incontroláveis].

Permanecia imóvel partindo na leveza da brisa ou numa música agradável ao toque. Num pássaro azul, pousado à janela. [Partir para onde? Para quê?] Regressava com o eco dos pontos de interrogação, a cravarem-se como setas, deixando instantaneamente de o serem para se transformarem em vis certezas desérticas. Vastas. De perder de vista no fio do horizonte. E o cansaço incansável. Impiedoso, a ganhar corpo ao próprio corpo.

Não lhe resistia. Baixara as luvas invisíveis convidando golpes miúdos de mar. Dançando-lhe certeiros. Desgastando os ossos antigos. [Dizia-lhes calado: É só disso de que és capaz? Sorria para dentro, num falso orgulho, que nunca existira, consciente da queda breve. Próxima. Inevitável. Reconfortante, talvez].

Permanecia imóvel adiando o tempo do próprio tempo. Esticando-o ao limite. Podendo inverter tudo à distância de um simples desejo. Ali, naquele preciso momento. Mas sabia-os infrutíferos. Perecedouros. Sucumbiriam rápido demais para o seu tempo de núvens estreladas. Para o seu tempo de pirilampos na noite mais fria.

Não esperava já nada. Ninguém. Perdera o interesse até da própria surpresa, que sempre o fascinara. Tornara-se numa espécie de escritor imóvel. Preso a uma cadeira e quatro paredes. Apaixonava-se, talvez, demasiado facilmente pelas pessoas e pelas coisas. Tão facilmente que o levara a resguardar-se por custar vê-las morrer diante de si. Nesse prazo de validade que sempre o atraiçoava.

Ali estava imóvel diante do terror do papel. Fiel companheiro de sempre. Insuportavelmente branco, infinito ou limitado por arestas finas. Cortantes. Sempre partida ou chegada. Sempre cru ou inacabado.

Consta que nunca mais foi visto, o escritor imóvel. Diz-se que se diluiu na própria folha. Diz-se que voou pela janela deixando imóvel o tempo que levou a cair no chão.

2 comentários:

© disse...

mesmo mágica esta tua escrita. e linda :)

AnaMar (pseudónimo) disse...

A mobilidade invisível duma escrita singular. E bela

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