4.03.2010

Aquela voz

Olhou a janela por uma última vez, a rua vazia despida de passos e de movimentos, libertando o silêncio escondido no frenesim do dia, resguardado pelo calor da luz amarelada dos candeeiros redondos, deslizando, enrolado na brisa que o empurrava no seu abraço invisível.

Sentou-se e apeteceu-lhe escrever. Sobre nada em concreto, com tanto a vaguear-lhe pela cabeça. Escrever por escrever, às vezes começa assim, com uma simples imagem ou uma vontade inadiável. Um aquecimento, que conduz ao que não se sabe ainda ter à espreita no virar da esquina.

Ficar calado a escutar a própria voz. Ouvi-la por dentro [não da boca para fora], e seguir o seu rasto calmamente, com pés de lã e olho de lince, e a mão solta pelo papel.

- "Vivemos num tempo estúpido: falamos mais do que entendemos e escutamo-nos tão pouco", saiu-lhe da voz muda, que continuou
- "Guardamos, em palavras, tão pouco do que mora dentro de nós. Momentos fugazes do que fomos nesse preciso momento, único [irrepetível talvez], mas que pode deixar, para sempre, o seu aroma de raspa de laranja, trazendo o sabor do sumo instantaneamente. Momentos atados com laços de seda, para não ferir as patas ou os deixar voar assustados, perdidos irremediavelmente."

Estranhos pensamentos estes, da sua voz ou da sua mão? Logo outro, de seguida, sem tempo para poder perceber o autor:
- "A perfeição não existe [falaste-me um dia da perfeição]. Existem momentos perfeitos, isso sim, poucos, tão difíceis como raros, sublimes fotografias, preciosas, que se devem agradecer e cuidar".

Raio da voz, a dar lições de moral, querem ver?
- "Como se sai daqui? deste poço escuro? onde à noite conversamos numa fogueira no deserto, mas onde afinal não estás [ou não tens voz também], ficas apenas no eco da tal fotografia, pendurada na máquina, a abanar ao pescoço no tal silêncio". Com o tempo fui-me tornando teu, agora fazes-me falta".

Tombei a caneta, pronto! Não me apetece ouvir mais a voz hoje. Adormeci, no entanto, a sorrir para dentro, sem nada dizer, com o cuidado de não acordares com a minha voz, que mesmo muda ou calada, fala muitas vezes de ti.

1 comentário:

Nanny disse...

Já há algum tempo que essa minha compulsão de escrever vem estando muda... ou se calhar fui eu que mudei... mas reconheço bem os gestos, as divagações...

A esses momentos perfeitos, de que falas, costumo chamar-lhe "fotografias mentais"... ficam-me gravadas na memória...

Beijinho

Assíduos do shaker

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