7.13.2009

Silêncios

Hoje, desde que acordei, comovi-me com toda a espécie de repetições. […] Hoje, ao contrário de quase sempre, parece-me que há mais verdade no pessimismo dos velhos do que no optimismo dos adolescentes. Contra isto, acabei de fazer a barba. Não resultou. Utilizei o pincel para espalhar o creme, utilizei uma lâmina de barbear nova, tenho a pele lisa e morna, mas não resultou.

Nunca gostei de dizer “as minhas ex-mulheres” (duas). Não apenas pelo tom de Elizabeth Taylor que essa expressão confere a qualquer frase, mas sobretudo pelo facto das pessoas em questão não serem ex-nada, ambas continuam a ser o que são e, hoje, talvez até sejam bastante mais do que eram perto de mim.

É justo que mude de parágrafo para explicar que, da mesma maneira, não gosto de dizer “as minhas ex-namoradas” (não as contei). Nesse caso creio que a expressão induz um número enganadoramente elevado. […] Foi em Cabo Verde, que aprendi a expressão “mães dos meus filhos”. É a mais correcta. Não apenas porque tem a palavra “mãe”, algo que elas são de forma infinita, mas também porque não nomeia aquilo que são para mim, o que é certo, uma vez que aquilo que são para mim não tem nome, existe no meu interior e, lá, tem todos os nomes impossíveis da gratidão absoluta e do afecto indelével e absoluto.

Mudando outra vez de parágrafo, não tenho nada para chamar às pessoas com quem tive algo, nem sequer palavra para esse “algo”. Aquilo que sei com certeza é que, a haver um ex-qualquer-coisa, esse ex-tudo só posso ser eu. […] Esta enumeração poderia continuar com muita facilidade. É melhor pará-la porque, hoje, as repetições têm-me comovido desde que acordei. […]

Hoje, agora, barba feita e inútil, apenas quero dizer que […] gostava de ter a coragem de ser como aquele escritor americano que há cinco/seis anos conheci em Haia, na Holanda. Desde a hora em que fomos apresentados, ele sentiu uma ternura instantânea e evidente por mim, uma ternura paternal, que aceitei. Era de noite, caminhávamos pelas ruas desertas de Haia, chovia um véu que nos cobria o rosto.

Ele passava dos sessenta anos, eu ainda não tinha trinta, falava dos filhos que eram homens e lhe telefonavam duas ou três vezes por ano, falava-me da solidão. Disse-me que estava sozinho há quase quinze anos. Quando lhe perguntei o motivo pelo qual não procurava companhia, respondeu-me que não queria fazer mal a mais ninguém. Essas palavras ficaram-me, ouço-as muitas vezes.

Nessa noite enquanto passeávamos, o escritor americano tropeçou e caiu com muita violência no chão, as mãos escorregaram-lhe quando ia para amparar a queda. Tentei ajudá-lo a levantar-se, recusou. Perguntei-lhe se devia chamar uma ambulância, recusou. Disse-me que só precisava de ficar deitado durante um instante. E assim foi. Ficou deitado no passeio, de barriga para cima, de olhos fechados, com a chuva a cobri-lo devagar. Eu baixei-me e fiquei ao seu lado. Durante esse instante, no silêncio, dentro da dor, houve paz.

José Luís Peixoto

3 comentários:

Raquel disse...

eu li esta crónica, de tarde, sentada ao sol... a todos nós a merecida paz!

Leonor disse...

Gosto muito do José Luís Peixoto.
No caso em apreço, uma lição de vida e do difícil equilíbrio entre o guardar e largar passados para se encontrar paz.

Xin xin

Shadow disse...

Belissimo! Gosto muito de josé luis peixoto, mas desconhecia este texto.

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