O desejo é um touro bravo fitando a tórrida planície num dia de verão.Surge do negro de sua cor, para cravar, fundo, as pontas aguçadas.
Fera indomável, persegue o vermelho que é sangue a fervilhar.
Como todas as noites preparava-se para se deitar. Escovava calmamente seus longos cabelos, sentada e já de camisa de noite, pensando no dia que agora acabava. Mas, à terceira escovagem, algo inquietou o seu olhar.
Ao tocar no espelho um arrepio intenso invadiu-a pelo indicador. Sentia a estranha sensação de estar despida do seu corpo. Havia algo familiar na imagem mas profundamente diferente, como um aviso, um alerta. Os olhos não eram os seus. Olhando mais atentamente não reconhecia as suas feições, as rugas, os sinais e, acima de tudo, uma ausência total do calor da sua pele.
Diante de si fixava-a um boneco articulado que teimava em acompanhar os seus movimentos. Uma frase, tão súbita quanto o arrepio, ecoou na sua cabeça fazendo cair a escova que se partiu em mil pedaços. Espelho meu existirá alguém mais fria do que eu?
Consta que há muito, muito tempo, num tempo onde o tempo ainda não era tempo a lua chorou. Numa noite esquecida, por uma única vez, duas lágrimas foram derramadas sobre uma folha de jardim. Uma simples folha de carvalho, envelhecida pelo Outono do tal tempo. De pele rugosa, desértica, marcada com a sina dos Homens nas suas veias.
Com pátios interiores e com palmeiras
Sophia de Mello Breyner Andersen
Mephisto era um gato pequeno e discreto. Uma espécie de tigre jovial saído da máquina de lavar, debutado em tons cinza brilhantes e riscas nocturnas. Apesar da sua tenra idade, tinha já instinto, independência, charme, carisma e requintes de malvadez irresistíveis. Quem o teria ensinado?
A cidade estava em silêncio. No tranquilo silêncio dum universo de pontos de luz. Estrelas no betão. Como que a aquecer um corpo frio, ao relento. Num piscar de olhos constante, divertido pela incapacidade de descobrir o próximo piscar.
Ali estava, a observar, a pairar sobre o seu mundo à distância de um rio. Numa dança entrelaçada de fumos, de cigarro e café quente na noite fria.
Há tantos rios que nos dividem. E por vezes, é na distância, no reflexo duma luz antes imperceptivel, que correm tranquilos e tão belos.
Molha eu,
Seca eu,
Deixa que eu seja o céu.
E receba
o que seja seu.
Anoiteça e amanheça eu.
“Protect me from what I want... Protect me protect me”Placebo
Algo mora em mim. Não sei quando nasceu, como apareceu ou o que deseja, mas instalou-se e ficou. Não conheço o meu inquilino pessoalmente. Não sei se é homem ou animal, masculino ou feminino, anjo ou demónio. Se o conhecesse não sei se lhe apertaria a mão ou colocaria as duas à volta do seu pescoço.
Não consegui ainda perceber o que é ou em que parte habita. Para ser sincero, só muito recentemente tive a certeza da sua existência. Podia ser uma miragem, um sonho, uma impressão no ouvido ou arrepio na pele. Mas quase apanhei o malvado um destes dias. Devia estar mais sonolento, quem sabe.
O meu inquilino é um cavalo alado, de cor branca invisível. É terrível e não dá descanso. É capaz do mais belo ao aterrador. Tem o prazer maquiavélico de dar ideias e comandar meus ímpetos. Faz olhar o insignificante pormenor, sentir o que nunca existiu, sonhar acordado num viajar constante. Habitua a desejar impossíveis ou a absorver pequenos nadas com que se alimenta.
O meu inquilino surge em relâmpago para sair a galope. Não tem sela, dorme pouco e não paga renda.
Dias úteis
O tempo passara. E com ele as tuas memórias. Assentaram, como flocos de neve no telhado, derretendo, aos poucos. Aparecendo apenas, teimosamente, em pingos nos beirais. Gelando o corpo ao esbarrar numa imagem, cheiro ou lugar. Mas aos poucos também elas adormeceram, ainda que num sono frágil.
O homem invisível decidiu dar cabo de mim