9.30.2007

Atrium

luta de sonâmbulos animais sob chuva. Insectos quentes escavam geometrias de baba pelas paredes do quarto. em agonia, incham, explodem contra a límpida lâmina da noite. são os resíduos ensanguentados do ritual.
na cal viva da memória dorme o corpo. vem lamber-lhe as pálpebras um cão ferido. acorda-o para a inútil deambulação da escrita.
abandonado vou pelo caminho de sinuosas cidades. sozinho, procuro o fio de néon que me indica a saída.
eis a deriva pela insónia de quem se mantém vivo num túnel da noite: os corpos de Alberto e Al Berto vergados à coincidência suicidária das cidades.
eis a travessia deste coração de múltiplos nomes: vento, fogo, areia, metamorfose, água, fúria, lucidez, cinzas.
ardem cidades, ardem palavras. inocentes chamas que nomeiam amigos, lugares, objectos, arqueologias. arde a paixão do esquecimento de voltar a dialogar com o mundo. arde a língua daquele que perdeu o medo.
germinam fluidos mágicos por dentro da matéria contaminada do corpo, os órgãos profundos gemem assustados pelo excesso. nunca mais voltámos a encontrar um paraíso. a pausa para respirar não existe, o tempo dos grandes desertos absorveu a seiva dos adolescentes dias.
a insónia, essa ferida cor de ferrugem, festeja noctívagas alucinações sobre a pele. no ácido écran das pálpebras acendem-se quartos alugados onde pernoitamos. são enfim brancos esses pedaços de memória onde dávamos abrigo e sossego aos corpos.
para sobreviver à noite decidimos perder a memória, cobríamo-nos com musgo seco e amanhecíamos num casulo de frio, perdidos no tempo mas, antes que a memória fosse apenas uma ligeira sensação de dor, registámos inquietas vozes, caminhámos invisíveis na repetição enigmática das máscaras, dos rostos, dos gestos desfazendo-se em cinza. escutámos o que há de inaudível em nossos corpos.
era quase manhã no fim deste cansaço. despertava em nós o vago e trémulo desejo de escrever.
passaram doze anos e esquecer-te seria esquecer-me. repara no estremecimento do sangue, a morte rendilhando peste nos ossos, os dedos paralisados, a fala, os espelhos.
no escuro beco do mundo segredo abelhas de esperma, a luz do mar onde teço corpos de água, a escrita que vem da treva, lembro-me: um corpo voltou a mover-se no interior do meu.

hoje abri novamente a janela onde sempre me debruço e escrevi: aqui está a imobilidade aquática do meu país, o oceânico abismo com cheiro a cidades por sonhar. invade-me a vontade de permanecer aqui, para sempre, à janela, ou partir com as marés e jamais voltar…
releio o que escrevi há doze anos neste mesmo lugar: as canetas secaram, os lápis ficaram esquecidos não sei onde. as borrachas já não apagam a melancolia das palavras. a escrita que inventámos evadiu-se do corpo. o vazio devora-nos. onde estivemos este tempo todo? voltaremos a encontrar e a tocar nossos corpos?

não estás aqui mas vejo-te nítido quando uma pétala de bruma envolve a casa e adormece o desejo. um astro ininteligível e de órbita difícil guia-me, ilumina-te. pelas frestas dum espaço oco perscruto o oco do meu corpo, o silente medo de continuar vivo.
sento-me no cimo do meu próprio lixo e sorrio. espero que cheguem outros dias com algum sonho, ou destino, mais feliz.


Al Berto

9.29.2007

Live forever





Maybe I don't really want to know
How your garden grows
I just want to fly
Lately did you ever feel the pain
In the morning rain
As it soaks it to the bone

Maybe I just want to fly
I want to live I don't want to die
Maybe I just want to breath
Maybe I just don't believe
Maybe you're the same as me
We see things they'll never see
You and I are gonna live forever

Maybe I don't really want to know
How your garden grows
I just want to fly
Lately did you ever feel the pain
In the morning rain
As it soaks it to the bone

Maybe I will never be
All the things that I want to be
But now is not the time to cry
Now's the time to find out why
I think you're the same as me
We see things they'll never see
You and I are gonna live forever
We're gonna live forever
Gonna live forever
Live forever
Forever


Oasis

9.28.2007

História

É importante alimentar a memória e conhecer o passado. Mas a História nunca conta verdadeiramente tudo.

9.27.2007

Sílabas

Há uma mulher que desenrola os seus cabelos nas sílabas
e perfuma-as com o odor da sua lenta vulva
Ela tanto pode ser uma fêmea da lua como uma rapariga solar
Nas suas ancas ondula um indolente outono e nos seus seios desponta a primavera

Eu vejo-a e não a vejo na brancura da página
porque ela flutua vagamente na distância como uma lua no meio-dia
Mares bosques clareiras fontes em delicadas e delgadas linhas
fluem com o fulgor dessa mulher azul
As palavras caminham com o ritmo fresco dos seus pés descalços
sobre uma praia fulva de conchinhas brancas
O seu hálito doce embriaga as leves sílabas
e a doçura do seu lábio impregna as frases nuas
Ela é a presença ausente corpo de aragem viva
e a sua felicidade é tão vaga como vaga a sua longínqua imagem


Ramos Rosa

9.26.2007

Burro


Espero até à minha morte conseguir, por vezes, não ser tão burrónico.


Quando eu morrer batam em latas,
Rompam aos saltos e aos pinotes,
Façam estalar no ar chicotes,
Chamem palhaços e acrobatas!

Que o meu caixão vá sobre um burro
Ajaezado à andaluza...
A um morto nada se recusa,
Eu quero por força ir de burro.


Mário de Sá-Carneiro


9.24.2007

The perfect hug

- Não chores.
Porque é que se diz isto às pessoas que choram em vez de abraça-las com muita força?


Miguel Esteves Cardoso
Grande verdade. Subscrevo.

9.22.2007

Os poemas

Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.
Quando fechas o livro, eles alçam vôo
como de um alçapão.
Eles não têm pouso
nem porto
alimentam-se um instante em cada par de mãos
e partem.
E olhas, então, essas tuas mãos vazias,
no maravilhado espanto de saberes
que o alimento deles já estava em ti...

Mário de Quintana

9.21.2007

Free love





If youve been hiding from love
If youve been hiding from love
I can understand where youre coming from
I can understand where youre coming from

If youve suffered enough
If youve suffered enough
I can understand what youre thinking of
I can see the pain that youre frightened of

And Im only here
To bring you free love
Lets make it clear
That this is free love
No hidden catch
No strings attached
Just free love
No hidden catch
No strings attached
Just free love

Ive been running like you
Ive been running like you
Now you understand why Im running scared
Now you understand why Im running scared

Ive been searching for truth
Ive been searching for truth
And I havent been getting anywhere
No I havent been getting anywhere

And Im only here
To bring you free love
Lets make it clear
That this is free love
No hidden catch
No strings attached
Just free love
No hidden catch
No strings attached
Just free love

Hey girl
Youve got to take this moment
Then let it slip away
Let go of complicated feelings
Then theres no price to pay

Weve been running from love
Weve been running from love
And we dont know what were doing here
No we dont know what were doing here

Were only here
Sharing our free love
Lets make it clear
That this is free love
No hidden catch
No strings attached
Just free love
No hidden catch
No strings attached
Just free love

Depeche Mode

9.19.2007

O pedido impossível

Quero um filho teu. Sem compromissos ou exigências. Sem nada pedir em troca. Sem projectos ou futuro. Sem perguntas. Quero simplesmente um filho teu.

Era uma mulher perfeita, com uma força sobrenatural típica das grandes catástrofes. Sempre tivera o que entendera, num simples estalar de dedos. Os homens sempre tinham caído a seus pés como insectos atraídos pela luz. Embatendo num vidro intransponível. Autênticos bonecos, nas suas mãos esguias como cobras.

Sempre quisera, no entanto, ficar só, afastando-os, um a um, numa brusquidão seca e insensível. Tinha a beleza magnética dum felino. Indomável. Imprevisível. Inatingível.

Aquela frase permanecia na sua cabeça como um mistério. Numa crueza lisonjeira mas irónica. Porquê ele? Perguntava-se. Ele, que sentira o seu veneno a espalhar-se no corpo mas conseguira ficar totalmente imune. Talvez por isso, lhe tivesse permitido aproximar-se. Aos poucos, é certo. Quase a medo. Mas habituara-se.

Talvez ela, no fundo, sentisse que ele a compreendia, por detrás da sua espessa armadura. Talvez aprecia-se as suas críticas e conselhos, apesar de nunca os ouvir ou seguir.

Nunca mostrava a mais pequena fraqueza, mesmo para ele, que a conhecia tão bem e que aprendera a ler os seus códigos indecifráveis. Encriptados aos comuns observadores. Nunca lhe vira uma lágrima. Um suspiro. Uma neblina, mais ténue, no seu olhar quente e distante. Mas sabia sempre quando não estava bem ou se sentia só.

Talvez, com o avançar da idade, sentisse pela primeira vez, algo fugir-lhe. Querendo prolongar noutro corpo os seus segredos, refinando essa natureza felina ou corrigindo-a, de vez, extinguindo esses genes malévolos, essa revolta interior.

Ela que sempre dissera que quando quisesse um filho simplesmente o adoptaria queria agora um filho, e logo seu. Encontrara finalmente um objectivo duradouro? Quereria pela primeira vez amar de verdade?


To be continued

9.18.2007

Partir

Pulsos abertos
E um sangue lento
Abandonando o corpo frágil
Despido. Perdido.
Lava quente a arrefecer
No espaço ao redor
Borrão de Rochard
Em tela final
Um peso que se liberta
Numa suavidade lenta.
Uma mão invisível
Acariciando o rosto
Que já não se reconhece seu
Uma vontade de adormecer
E partir

9.17.2007

O segredo

Vou contar-vos um segredo. Conheço um ninho distante. De tudo. De todos. Nele encontro sempre asas, vento e azul.



Sei um ninho.
E o ninho tem um ovo.
E o ovo, redondinho,
Tem lá dentro um passarinho
Novo.
Mas escusam de me atentar:
Nem o tiro, nem o ensino.
Quero ser um bom menino
E guardar
Este segredo comigo.
E ter depois um amigo
Que faça o pino
A voar...

Miguel Torga

Filmes 15

E assim termina este breve, e porventura desinteressante, apanhado sobre os filmes que me ocorreram quando me questionei sobre a recorrente pergunta dos filmes da minha vida.

Sem qualquer ordem de importância e verificando a extrema dificuldade de escolha e o esquecimento de alguns importantes fui fiel à lista inicial que me surgiu.

Que me perdoem Woody Allen’s, Clint Eastwood’s, Tim Burton’s, Cronemberg’s, Luc Besson's e Kurosawa’s mas tinha que respeitar o prometido e terminar nos 15, reservando para último o verdadeiro filme da minha vida: o próximo, que estou continuamente a descobrir.

9.16.2007

Filmes 14

Um thriller enigmático. A sensação de desolação e loucura numa espécie de solidão que exprime um estado interior. A assustadora vingança da natureza sobre o Homem, servida num suspense perfeito, quase sádico.


A história inicia-se numa loja de animais onde uma bela mulher, rica e sedutora, ao sentir-se atraída por um homem, decide comprar um casal de pássaros para lhe fazer uma surpresa. Oferecendo-os, mais tarde, na sua terra natal - Boodega Bay.

Uma vez chegada a essa pequena e pacata localidade é estranhamente atacada por uma gaivota. Seguem-se inexplicáveis e sucessivos ataques de pássaros aos habitantes locais. Ninguém sabe o porquê de tal fenómeno. Fica no ar uma multiplicidade de suposições, desde uma possível manifestação sobrenatural sobre o pecado cometido a uma irónica inversão dos papéis predador/presa, com as aves comandando o ser humano remetido para a gaiola.

No fim, o aguardado e tradicional “The End” não surge no ecrã, deixando a dúvida incómoda da luta entre o animal e o Homem, entre o racional e o irracional, entre a ordem e o caos.


The Birds, Alfred Hitchcock, 1963

9.15.2007

Filmes 13

Oh Capitain, my capitain. Porque há pessoas que nos inspiram e marcam as nossas vidas.


Em 1959, num colégio particular de rapazes, um novo e carismático professor de literatura inglesa incentiva os alunos a pensarem por si mesmos e a perseguirem sempre as suas paixões individuais, incentivando-os a viverem as suas vidas em pleno. Os seus métodos de ensino pouco convencionais cedo entram em choque com os valores tradicionais e conservadores preconizados pela ortodoxa direcção do colégio, principalmente quando fala aos seus alunos sobre a "Sociedade dos Poetas Mortos".
Repleto de citações de grandes nomes da literatura de língua inglesa, como Henry David Thoreau, Walt Whitman e Byron, e de belas imagens metafóricas deixa uma profunda mensagem de vida sintetizada na expressão latina Carpe Diem.

Dead Poets Society, Peter Weir, 1989

9.12.2007

Lábios

Dormíamos nus
no interior dos frutos.

É o que temos: sono
e a estiagem subitamente
até ao fim.

Amargos.

Pela humidade descia-se
Às fontes – lembro-me.
Dos lábios.

Eugénio de Andrade

9.10.2007

9.09.2007

Dizem que a paixão o conheceu

Dizem que a paixão o conheceu
mas hoje vive escondido nuns óculos escuros
senta-se no estremecer da noite enumera
o que lhe sobejou do adolescente rosto
turvo pela ligeira náusea da velhice

conhece a solidão de quem permanece acordado
quase sempre estendido ao lado do sono
pressente o suave esvoaçar da idade
ergue-se para o espelho
que lhe devolve um sorriso tamanho do medo

dizem que vive na transparência do sonho
à beira-mar envelheceu vagarosamente
sem que nenhuma ternura nenhuma alegria
nunhum ofício cantante
o tenha convencido a permanecer entre os vivos
Al Berto

9.07.2007

Túnica

Apetece-me âncorar nesta praia deserta e ali ficar deitado. Respirar. Apenas respirar, embalado pelo mar, permanecendo imóvel como um barco encalhado. Olhando o desvanecer do céu na noite. À espera da morte. Fechar os olhos e sentir o leve assentar da sua túnica. Misturar-me na areia e voar em todas as direcções.

9.05.2007

A casca

Como detesto cascas...


Continuamos a tratar da casca
Continuamos a moldar a casca
Continuamos a remar de costas
E a provar águas quase mortas
E a viver ruas já pisadas
E a levar pedras já usadas
Num saco meio roto
Num saco meio morto

Tentamos não manchar a casca
Para fazer brilhar a casca
Tentamos não parar de costas
Tentamos não falhar respostas
Que nunca nos vejam de fora!!
É para nós que o mundo adora
Passos de dança no chão
É para nós que os olhos olham.

Tentamos disfarçar demónios
Por medo desviamos olhos
Por fuga apagamos fogos
Por escudos renascemos novos
Sem rasto esquecemos lábios
Altivos, rastejamos, sábios
Cada vez mais fundo
No buraco do mundo

Com força agarra-se a casca
Que é só o que nos resta
Que o mastro derreteu
Mais tudo encolheu
Quisemos testar barreiras
E construímos teias
Difíceis de romper
E aqui ficamos presos
...na casca.

Casca é tempo que dói
É janela fechada que estilhaça
quando se olha para trás..
Vento é o que bate na cara
É só largar a casca!!
Não se olha para trás!


Toranja

9.04.2007

Devir animal

Àquela hora naquele lugar. Como que num passo de mágica, as pessoas encarnavam o animal escondido nos seus corpos. Já tinha assistido a muitas manifestações desse fenómeno. Num gesto. Numa feição ou reacção. Num olhar. Aqui ou acolá, neste mundo de semelhanças e eternas repetições. Mas assim. Tão notório, tão explicito. Nunca vira. Naquela combinação astral, de hora e local, misturada talvez, numa outra coordenada indecifrável, algo inacreditável tornava-se na mais pura das evidencias. Indiscutível. Irrefutável. Por breves momentos, um regresso à inocência. Onde a mais vil crueldade humana se dissipava no vento. A mais urgente das pressas estalava em cacos ao sol e um aroma adocicado, de loucura colectiva, pairava algures na folhagem. Por breves momentos, eliminavam-se distâncias e o mundo tornava-se melhor.


Inspirado num quadro de Paula Rêgo

9.02.2007

Filmes 12

Um lugar para além dos sonhos. Uma especiaria mágica no centro do universo. Um filme para além da imaginação


Baseado no livro de Frank Herbert, considerada uma das maiores obras de ficção científica de todos os tempos, apresenta-nos um fantástico mundo longínquo de ameaças, esplendor e intriga. Dune passa-se num futuro distante, no meio de um império inter-galático em expansão, onde feudos planetários são controlados por casas nobres. A história explora as complexas interacções entre política, religião, ecologia, tecnologia e emoções humanas.
O planeta Dune contem vermes gigantes que guardam o mais precioso e inestimável bem do universo - a especiaria “Melange”que permite viajar através do tempo e do espaço. Quem controlar a especiaria e os seus segredos controlará o universo.


Dune, David Lynch, 1984

9.01.2007

Filmes 11

A pantanosa loucura da guerra. A ausência de sentido, num gás sombrio de ilusões impregnando, aos poucos, a realidade.


Em plena guerra do Vietname, um oficial americano é enviado numa missão secreta até ao Camboja. Objectivo: “destruir” um enigmático coronel que, controlando uma tribo na selva remota, se encontra louco e fora de controlo.

Durante a jornada, rio acima, acompanhado por quatro tripulantes, que servem como microcosmo da força de guerra americana, tudo parece estar ao sabor da ilusão, da loucura e das sombras mais obscuras do coração humano.

Quadro fiel do horror, sensibilidade e dilema moral da guerra americana mais surrealista e obscura.

Apocalypse Now, Francis Ford Copolla, 1979

Assíduos do shaker

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