11.29.2006

A sombra

Faz-se luz pelo processo
de eliminação de sombras
Ora as sombras existem
as sombras têm exaustiva vida própria
não dum e doutro lado da luz mas do próprio seio dela
intensamente amantes loucamente amadas
e espalham pelo chão braços de luz cinzenta
que se introduzem pelo bico nos olhos do homem

Por outro lado a sombra dita a luz
não ilumina realmente os objectos
os objectos vivem às escuras
numa perpétua aurora surrealista
com a qual não podemos contactar
senão como amantes
de olhos fechados
e lâmpadas nos dedos e na boca

Mário Cesariny


Por mais sombras que me se deparem sempre existirá uma vela dentro de mim

11.28.2006

Chocolate

" Nove em cada dez pessoas diz gostar de chocolate. A décima está a mentir"


Doce, amargo
a preto e branco
tens a cor da tentação
Encanto de sedução
Num derreter de prazer

Espesso veludo
Quente, envolvente
é na alma que viajas
Vício amante
Fulminante

Nas tuas mil formas
mil e uma noites
Cerimónia Inca
de sentidos, despidos
na magia, do chocolate

11.27.2006

Perfeição em céu azul


“Digam o que quiserem sobre os Dez Mandamentos, devemos dar-nos por felizes por ele não passarem de dez”

H. L. Mencken

Não fumava
Não bebia
Andava
Corria

Dieta sem sal
sono em dia
Regra fatal,
dizia

Morreu
atropelado
e o céu, não cedeu.
Permaneceu, azulado

11.26.2006

Um adeus ao poeta

Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos morte violar-nos tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício

Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
e há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição

Entre nós e as palavras, surdamente,
as mãos e as paredes de Elsenor
E há palavras nocturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos connosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmo só amor só solidão desfeita

Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar
Mário Cesariny


A ele que achava que a televisão matara a conversa e estrangulava o óbvio com as duas mãos - a de pintor e a de poeta - a minha humilde homenagem.
Obrigado pela tua palavra.

11.25.2006

Vida

A vida é o dia de hoje,
A vida é ai que mal soa,
A vida é sombra que foge,
A vida é nuvem que voa;
A vida é sonho tão leve
Que se desfaz como a neve
E como o fumo se esvai;
A vida dura um momento,
Mais leve que o pensamento,
A vida leva-a o vento,
A vida é folha que cai!

A vida é flor na corrente,
A vida é sopro suave,
A vida é estrela cadente,
Voa mais leve que a ave;
Nuvem que o vento nos ares,
Onda que o vento nos mares,
Uma após outra lançou.
A vida - pena caída
Da asa de ave ferida -
De vale em vale impelida
A vida o vento a levou!


António Aleixo

11.24.2006

Amigos

"Amigos são anjos que nos sustêm quando as nossas asas estão magoadas"


Talvez te tenha magoado.
Se aconteceu, foi apenas pela vontade de te perceber.
Juntar pequenas peças do teu silêncio cálido e frio.
Uma vontade de redescobrir a estranheza do já familiar.
A cumplicidade do olhar, o nascer dum sorriso, a confidencia de tudo o que se quiser. Bastava-me tal. Acredita.
Também me magoou a tua premeditada indiferença. Talvez difícil, não o sei.
Mas orgulho é, para mim, um sentimento pesado. Prende as asas, afunda-nos. Sempre preferi esvaziar o orgulho numa palavra.
Os amigos não se decretam. Sentem-se, descobrem-se, vivem-se e amparam-se, nos bons e maus momentos. A amizade é, também o "amor sem asas", pena que as deixes cortar assim.
Apenas pena. Nada mais.

11.22.2006

Taxi

Such a rush to do nothing at all
Such a fuss to do nothing at all
Such a rush to do nothing at all
Such a rush to get nowhere at all
Such a fuss to do nothing at all
Such a rush...


Coldplay


Cansados vão os corpos para casa de um frenesim quotidiano de tarefas, compromissos, horários. Urgentes, vitais, inadiáveis, multiplicam-se em catadupa, numa velocidade estonteante que veste o tempo de uma transparência que se dilui nos dias.
E para quê? Que velocidade é esta que não deixa saborear um passeio a pé, cozinhar um prato estupidamente demorado com o preceito do pequeno pormenor, o falar com o amigo que entretanto se perdeu o rasto, estudar os eternos mistérios, do universo à filosofia, contemplar as estrelas, ler, reler, reflectir, descobrir, viajar, inventar.
Tantas das nossas preocupações, lutas e desgaste são laranjas sem sumo na salada de frutas do nosso almoço apreçado. Já estou atrasado. Taxi...

11.20.2006

One day

One day maybe we will dance again
Under fiery skies
One day maybe you will love again
Love that never dies

One day maybe you will see the land
Touch skin with sand
You've been swimming in the lonely sea
With no company

Oh, don't you want to find?
Can't you hear this beauty in life?
The roads, the highs, breaking up your life
Can't you hear this beauty in life?

One day maybe you will cry again
Just like a child
You've gotta tie yourself to the mast my friend
And the storm will end

Oh, don't you want to find?
Can't you hear this beauty in life?
The times, the highs, breaking up your mind
Can't you hear this beauty in life?

Oh, you're too afraid to touch

Too afraid you'll like it too much
The roads, the times, breaking up your mind
Can't you hear this beauty in life?

One day maybe I will dance again
One day maybe I will love again
One day maybe we will dance again
You know you've gotta
Tie yourself to the mast my friend
And the storm will end
One day maybe you will love again
You've gotta tie yourself to the mast my friend
And the storm will end

The Verve
Talvez, um dia...

11.19.2006

Asas


Asas servem para voar
para sonhar ou para planar
Visitar espreitar espiar
Mil casas do ar

As asas não se vão cortar
Asas são para combater
Num lugar infinito
para respirar o ar

As asas são
para proteger te pintar
Não te esquecer
Visitar espreitar-te bem alto do ar

Só quando quiseres pousar
da paixão que te roer
É um amor que vês nascer
sem prazo, idade de acabar
Não há leis para te prender
aconteça o que acontecer.

GNR
Hei-de sempre voar!

11.18.2006

Portugal

Ai Portugal, Portugal
Do que é que tu estás á espera?
Tens um pé numa galera
E o outro no fundo do mar


Jorge Palma


Pedaço de terra virado para o mar.
Navegador destemido,
Como te fizeste
tão pobre de horizonte?


Criatividade nunca te faltará,
pena que a uses,
apenas para te enganar
a ti próprio.


Sacrifícios, cada vez menos,
consolados na saudade, tão tua.
Será o fado que te quebra a ambição?
Adormecendo-te num negativismo moribundo?


O som das gaivotas junto às velas velozes
são agora abutres imóveis, de mal dizer,
para quem as vitórias nunca são suadas,
mera "sorte", na inveja do deixa andar.


Que sonhos tens?
Que vontades?
Com que vibras tu? Chutos na bola?
Solta as amarras, acorda deste pesadelo.


Existe um Portugal
em quadro de Paula Rego
com prefácio de Lobo Antunes
e banda sonora dos Madredeus.
onde João Magueijo questiona Einstein
e Damásio contraria Descartes.


Um Portugal com o mistério de Sintra
e o sabor das pataniscas de bacalhau
onde história se casa com o futuro
e tudo apenas à distância
da ambição.

11.16.2006

Piano

Na perfeição divina
da cauda de um piano
me perdi para sempre
no percorrer das mãos.

Sensualidade noturna
em forma esguia, fugidia.
Mulher fatal, num tranquilo
esperguiçar.

Branco e preto
em ressonância de cores
do poder de ataque
à mais pura leveza.

Corpo e alma
que se espalha e dilui
numa sala fechada
com vista para o mundo.

11.15.2006

Brilhos

Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive

Ricardo Reis


Nem tudo o que toco brilha, mas é, de facto, brilhante o brilho que contagia, outro brilho.

11.12.2006

Essa música

Essa música ou água
Quando a água é álamo

Essa música ou terra
Quando a terra é barco

Essa música ou chama
Quando a chama é onda

Essa música – eras tu
Ou um pássaro na sombra?

Eugénio de Andrade


Lembro a música dos teus gestos, sedosos, de quimono que se fez asa, e voou.

11.10.2006

Néon

Movimento constante, ruído, automóveis. Partidas e chegadas temperadas por uma luz sufocante, com vida própria. Era a sua primeira noite em Hong-Kong e ainda não sabia responder ao porquê da sua escolha. Um lugar distante bastara, talvez, curiosidade inconsciente, pela urbe cosmopolita oriental, entregue pelos Ingleses à China, assim como ele se deixara entregar ao desconhecido, num fim do mundo onde não conhecia ninguém.

Saíra repentinamente e, acompanhado pelos seus pensamentos, passeava nas ruas entre letras indecifráveis, restaurantes com comida de sorteio, palavras sem sentidos. Seguia em frente atraído pelas luzes sem conseguir parar. De repente, um sorriso com a metáfora que também se lhe iluminara na cabeça: Não há luz ao fundo do túnel mas um túnel de luz onde nem o escuro se consegue vislumbrar.



11.09.2006

In your room




In your room
Where time stands still
Or moves at your will
Will you let the morning come soon
Or will you leave me lying here
In your favourite darkness
Your favourite half-light
Your favourite consciousness
Your favourite slave

In your room
Where souls disappear
Only you exist here
Will you lead me to your armchair
Or leave me lying here
Your favourite innocence
Your favourite prize
Your favourite smile
Your favourite slave

I'm hanging on your words
Living on your breath
Feeling with your skin
Will I always be here

In your room
Your burning eyes
Cause flames to arise
Will you let the fire die down soon
Or will I always be here
Your favourite passion
Your favourite game
Your favourite mirror
Your favourite slave

I'm hanging on your words
Living on your breath
Feeling with your skin
Will I always be here

Will I always be here

Depeche Mode

11.08.2006

Gomo de tangerina

Todos vieram
ver a menina
ao primeiro gomo da tangerina
menina atenta
não experimenta
sem primeiro
saber do cheiro
o sabor nos lábios
gestos sábios

Fruta esquisita
menina aflita
ao primeiro gomo da tangerina
amarga e doce
como se fosse
essa hora
em que chora
e depois dobra o riso
e assim faz seu juízo

Ah, que se lembre
sempre a menina
do primeiro gomo da tangerina
p'la vida dentro
é esse o centro
da parcela da vitamina
que a faz crescer sempre menina

A terra é grande
é pequenina
do tamanho apenas da tangerina
quem mata e morre
nunca percorre
os caminhos do que há de melhor
nesse sumo
a vida, gomo a gomo

Sumo na vida
é o que eu te desejo
rumo na vida
um beijo
um beijo


Sérgio Godinho

11.07.2006

Magia do impossível

Pouco importa o nome:
Para nascer
Escolhi um rio.

A criança que fui
Tem agora a idade
De uma pedra de água.

Enquanto dorme
Parte com os pombos bravos.
Quando regressar
Virá com os álamos.
Eugénio de Andrade




Curioso, adormecer acordando sonos, que uma vez dispertos, não mais descançam. Viajam por mares nunca navegados, sem dia nem noite, batendo asas para o universo que logo se faz oceano. Fogo de espuma, música que cheira, céu de carícias na magia do impossível.

11.06.2006

Deusa grega

Pelo teu salto
subi à brancura das nuvens
para te trazer de volta
em passadeira vermelha.

Deusa Grega,
a forma do teu sapato.
Prada que se fez prado
numa tacada de golf.

Bola incandescente
a perder de vista,
na inquietude
das nossas conversas.

11.05.2006

Tatuagens

Em cada gesto perdido
Tu és igual a mim
Em cada ferida que sara
Escondida do mundo
Eu sou igual a ti

Fazes pinturas de guerra
Que eu não sei apagar
Pintas o sol da cor da terra
E a lua da cor do mar

Em cada grito de alma
Eu sou igual a ti
De cada vez que um olhar
Te alucina e te prende
Tu és igual a mim

Fazes pinturas de sonhos
Pintas o sol na minha mão
E és mistura de vento e lama
Entre os luares perdidos no chão

Em cada noite sem rumo
Tu és igual a mim
De cada vez que procuro
Preciso um abrigo
Eu sou igual a ti

Faço pinturas de guerra
Que eu não sei apagar
E pinto a lua da cor da terra
E o sol da cor do mar

Em cada grito afundado
Eu sou igual a ti
De cada vez que a tremura
Desata o desejo
Tu és igual a mim

Fazes pinturas de sonhos
E pinto a lua na tua mão
Misturo o vento e a lama
Piso os luares perdidos no chão
Mafalda Veiga

11.04.2006

Felina imaginação


“Por vezes o entendimento descontrai-se para que a esperança se divirta com o que a imaginação sonha.”



Camuflado, na pacatez aparente,
numa lentidão imóvel, invisível,
percorre a sombra
com passos firmes.

Um olhar sedutor, magnético
encurta distâncias,
preparando o ataque
felino, meticuloso.

Eis que surge.
Do nada, com o esvoaçar dos pássaros.
Arrastando, em seu salto,
a mente para outro local.

A imaginação é um Tigre
de quentes tonalidades laranja
e suas listas negras são
varinhas de condão.

Na viagem mágica que é a imaginação.

11.03.2006

A corda


Assim me prendeste
à música das ondas
do teu sorriso,
mistério de espuma.

Assim me apertaste
num nó cego
ao horizonte infinito
do teu olhar.

Assim me amarraste
ao frágil sotaque
de sereia
a correr na praia.

Assim me entrelaçaste
nas densas algas
da tua natureza
revolta.

Assim me liguei a ti,
como corda salgada
por mares navegados
em noites estreladas.

Fazes-me falta.
A corda também
se atira
e agarra.

11.02.2006

Escuridão brilhante

Onde estás que não te vejo?
Sinto-te a toda a volta,
sinto-te em mim...
Mas não te vejo...
Sinto-te na alma, sinto-te no coração
quase tão real, que quase poderia segurar na tua mão.
Mas não te vejo...

Procuro por ti
em cada rua, em cada canto
para terminar a minha busca,
triste e amarga.
Mas não te vejo...
Não te vejo mas eu sei
que não será sempre assim,
pois eu colho da paixão
a força que trago em mim.

Eu não te vejo...
mas será isto ilusão, será isto loucura...
ou talvez na sua forma mais pura,
apenas paixão e desejo?!
Não te vejo,
mas digo com o sabor de uma alma que sentiu.
Não é só o desejo de te encontrar,
é também a saudade
de quem nunca de mim saiu.
M.


Quantas vezes é na total escuridão que brilha a alma e se ilumina um poema.
Não sei se foi o caso, mas sempre preferi voar no desconhecido da escuridão brilhante a permanecer imóvel em claridades que ofuscam.

11.01.2006

Tarantula


"Quando se gosta da vida, gosta-se do passado, porque ele é o presente tal como sobreviveu na memória humana"

Marguerite Yourcenar


Na teia dos meus pensamentos
percorri o passado num cálice de Porto
descendo o rio
com a brisa vagarosa da noite.

Escorreguei em espelhos de água
danças de flashs, imagens.
Derrotas mais importantes que vitórias
beijos de veludo, cumplicidades, amigos.

O passado é uma tarantula
macia ao toque, venenosa
se por lá ficamos, embalados
agarrados ao que não volta.

Passado o calor no peito.
Presente o património da memória
o futuro permanece escondido,
na teia de uma tarantula.

Assíduos do shaker

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