Entrevista a um dos escritores portugueses contemporâneos que mais admiro desde que se iniciou e não era muito conhecido. Absolutamente envolvente e fascinante.
1.
O fáscínio da letra, do alfabeto. O alfabeto é uma coisa invulgar porque, com muito pouco material, com muito poucas peças nós conseguimos fazer um conjunto de combinações intermináveis <...> quando nós começamos a ler deixamos de ver a letra <...> as letras fazem parte de um mundo completamente abstrato <...> a velocidade da leitura é um mundo que é completamente distinto do mundo normal <...> abrir um livro é muito semelhante a entrar numa igreja, ou seja, nós diminuimos a velocidade, o silêncio aparece, concentramo-nos. Nós quando abrimos um livro de certa maneira temos ali uma máquina de lentidão <...> As “máquinas de lentidão”, o livro, são cada vez mais necessárias, e é ao mesmo tempo uma máquina de reflexão, de pensamento como não há outra. A televisão, o teatro, o cinema, não têm este tempo individual dado ao leitor, que é uma coisa que o livro tem <...> o leitor pode parar numa frase 2 minutos, 30 segundos ou 2 anos, ou seja o ritmo é do leitor e este o ritmo é do pensamento, é o ritmo próprio do pensamento.
2.
O apelo para o quantitativo <...>; “Pediram-me para rezar mas eu só me lembrava da tabuada” <...> vivemos muito pelo signo da tabuada, quando se pede espírito respondem-nos com a tabuada, quando se pede cultura respondem-nos com a tabuada, e cada vez mais, 2x2=4, quando alguém pede piedade responde-se com 2x2=4, quando alguém pede uma sugestão, 2x2=4 <...>; a possibilidade da pessoa reparar nas coisas, provavelmente o que há hoje muito pouco, devido a esta velocidade, é a dificuldade em parar. E reparar não é parar, é parar, e continuar parado, continuar parado diante da mesma coisa. Parar é continuar parado durante muito tempo diante da mesma coisa <...> Nós só reparamos as coisas [de reparar/arranjar] se repararmos nelas <...> o que julgo que falta é lentidão <...> a multiplicação das imagens leva a uma falta de atenção perigosa
3.
Há uma urgência, a cultura do tempo é deixada para trás <...> a ideia de uma obsessão, a obseção da linha recta <...> o Homem não descansou enquanto não transformou a viagem num percurso em linha recta, primeiro com a auto-estrada <...> e o avião foi o máximo disso, já nem sequer se faz o percurso pelo solo, levanta-se, e tenta-se traçar a linha recta, como uma ideia de caminho mais curto. O que é interessante é que a linha recta está muito ligada, até pela palavra, com a rectidão moral <...> o que me interessava no “Caminho para a Índia” era o desvio da linha recta, a viagem do protagonista está constantemente a sair da linha recta, de certa maneira está a desviar-se geométricamente e moralmente, é uma viagem imoral, perversa e de certa maneira contradiz um pouco esta obseção pela pressa, pela de linha recta, que me parece que está instalada.
Entrevista a Gonçalo M. Tavares na integra aqui
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