3.23.2010

Cansaço

Acordar com sono e cansado. Nadar 50 piscinas desafiando o cansaço. Tomar um banho quente até não conseguir suportar o calor. Gritar em silêncio. Afogá-lo ali. Sentir os músculos relaxados mas incomodados. Abrir e fechar os olhos repetidamente. Lava-los por dentro, por pouco apetecer ver. Olhar-se no espelho e ser assaltado por breves segundos: “algo me apunhala por dentro e foge sem o conseguir apanhar”. Não fazer a barba. Perfumar-se sem exagerar. Vestir uma camisa branca. Pegar as chaves do carro e sair. Colocar um CD que nunca se ouviu e se comprou, ao acaso, pelo grafismo da capa, já que é assim que se descobrem as coisas. Viajar sem destino, sem pressa, sem tempo ou hora marcada. Novo assalto, desta vez com pré-aviso: “mãos ao ar, tenho saudades tuas”. Quebra-se o vidro em mil pedaços, não o do carro mas o dos olhos, afinal mal lavados. Encostar na estrada do Guincho, junto ao mar. O vento a revistar o corpo, profanado, com as mãos frias por dentro da camisa. Acender um cigarro a custo. Uma voz a seu lado a perguntar-lhe do que queria falar. Não é preciso falar. Salpicos, trazidos pelo vento, espantam a voz, que não chegara a sê-lo, mas se mantivera ali, sentada, a olhar. É tão bom olhar. O carro com um cheiro diferente - resíduos da pólvora ou de ti. O peito furado com um tiro só agora apercebido, que se sente no calor do sangue debotado na camisa. De novo o cansaço com o alastrar da cor. O cansaço e o pôr do sol. E o sangue, a correr para o mar, de mãos dadas com esse cansaço e o pôr do sol. O CD já calado, mas com o barulho duma agulha de um vinil antigo e a voz, novamente sentada no banco do lado, a fazer festas no cabelo revolto, despenteado pelo vento, sem nada dizer, só a olhar. Olhar. Os olhos a fecharem-se, finalmente lavados. Apagados por um beijo dessa voz. O corpo esvaziado aos poucos, cada vez mais cansado mas em paz. Com mais luz. Branca. Mais branca que a camisa, mais branca que a fronha da almofada ou a espuma das ondas a embalar, a embalar. Dormir ao som do mar e de uma voz inaudível, ali ao lado, a olhar.

3 comentários:

Pi disse...

a idade está-te a fazer bem!...
e eu não consigo deixar de te ler....:)
texto muito bom, este, sensual....

Lena disse...

Afogar não só o cansaço... mas tudo, e não voltar! Deixar tudo em branco, incluindo o vazio que restou.

Quase disse...

Tocou-me de tal modo o que acabei de ler que não consigo dizer o que tenho vontade sem me sentir a invadir a tua privacidade...
Fico-me pelo XinXin final, e espero que não leves a mal....

Bjo

Ana

Assíduos do shaker

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