11.22.2009

Verónica decide viver

O rio agitado, com a água a falar, aflita. Movimentos revoltos, sinais indecifráveis arrepiando a pele, silenciados apenas pelo fio do horizonte, cortando-lhes repentinamente a perspectiva, afastando a atenção para longe. A tempestade distante, avançando num galope pausado e pesado, sentindo-se a proximidade a cada passada, a cada tremer da terra, a cada eco, cada vez mais próximo [mais rápido que o trovejar dos pensamentos, baralhados por aquela presença], bafejando um vento esguio, colado ao corpo, tocando-o numa frieza estranha, a seu bel-prazer, soltando-lhe os cabelos numa dança indecifrável de movimentos anárquicos.

Verónica atónita, sem reacção, estática na sua falta de vontade, deixando cair a mala e o corpo, com a mesma indiferença, com o mesmo pesar. Verónica perdida onde lhe transportava o olhar, embalada naquele galope, naquele ritmo alado de maré, algures no meio dum nada que se sente tão presente. Verónica sem palavras ou adjectivações, apenas Verónica, no seu nome familiar sussurrado ao ouvido, vezes sem conta, e uma estranha sensação de se diluir aos poucos nesse som, nessa presença agitada, nesse estender de mão invisível, cada vez mais próximo, mais presente.

E as árvores atentas, às suas ínfimas acções, paralisadas, acenando-lhe silêncios, e as nuvens paradas, sustendo a respiração. Verónica de pernas cruzadas e mãos recostadas no velho banco metálico, enferrujado pelo verdete do tempo ou, talvez, por aquele avesso de beleza, atípica mas indomável. Verónica à mercê das investidas daquele íman inquietante, daquela fonética visual, que lhe acelerava o sangue e a prendia sem defesas.

A um raio com brilhos de mil espelhos moídos seguiu-se um estrondo abrupto, próximo e demorado, assinalando a chegada daquela voz sinistra mas meiga, vestida de tempestade, agora troteando, já a pequenos passos de si [segundos eternizados num tempo mais lânguido, em câmara lenta].

Verónica estremeceu, ao ouvir pela última vez o seu nome ao ouvido e ao sentir-se tocada no rosto e despida de tudo, com aquele eco, no mais fundo de si. Uma voz melodiosa que lhe arrepiava o avesso da pele, instalando-se em cada contorno ou esconderijo mais recôndito, preenchendo os espaços que julgava impossível de descobrir.

Pertenças, memórias, fés ou saberes. Passados ou futuros, tudo escorreria para fora de si, com a chuva copiosa que rebentara e algumas lágrimas que não conseguira suster. Uma leveza de paz sublime, há muito esquecida, aquecia-lhe a alma e o corpo ainda imóvel e ensopado.

Levantou-se como que se libertando de um sopro estranho. Partiu com essa voz guardada, muito apertada, dentro de si. Não se ouvia há tanto tempo e não se dava a ouvir há mais ainda. Partiu com a certeza de que há coisas estranhas que nos sussurram o nome e que não interessam perceber ou saber explicar.

2 comentários:

Arisca disse...

Às vezes o silêncio não basta para que nos possamos ouvir a nós mesmos...
Todos somos interpelados por essa voz num momento ou outro da vida. Nem sempre conseguimos compreender o que ela nos diz.

*bons ventos

Arisca disse...

Apesar de conehecer este cantinho há pouco tempo, estou a gostar bastante do que aqui escreve e deixei-me um "miminho" no meu blogue.
Espero que o aceite :)

*bons ventos

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