Não via a K há muito tempo. K, chamemos-lhe assim. Não via a K ao tempo de já não pensar, ou me lembrar da K. Para aí desde os meus 18 anos, ou seja, há quase esse número de anos. A vida pode dar muitas voltas em 18 anos.
A K foi minha vizinha, anos a fio. Vizinha, e amiga de infância. Amiga de brincadeiras intermináveis. Amiga à distância de um hall de entrada, ora em minha casa, ora em sua casa. Amiga de aniversários. Amiga de ver crescer. Amiga de ficar cheio de mazelas por andar ao supapo para a defender. Amiga.
Ainda me lembro da tara da K em querer ser cabeleireira e de me querer cortar os meus cabelos, cheios de caracóis, à força, e eu a arranjar sempre artimanhas para escapar ileso. Ainda me lembro da mãe da K dizer que seria a minha namorada e eu dizer que éramos só amigos, por já gostar daquela que viria ser a minha primeira namorada no jardim escola. Ainda me lembro do luxo de jogar, mais tarde, PacMan em casa dela, no tempo em que ninguém tinha videojogos, e que o pai da K trazia de Paris. Ainda me lembro das longas noites de Pictionary ou de King com os pais da K, ou das audições de ballet, onde ficava com uma leveza linda, ou das tardes no picadeiro quando começou a participar nas provas de equitação.
A K sempre teve tudo. Tudo a um estalar de dedos, mas sempre fora uma miuda perdida e muito influenciável. Ouve um dia em que os pais decidiram mudar de casa. Mudar de terra, por causa do negócio próspero do pai, e foi assim que me afastei da K. E que fomos perdendo gradualmente o contacto.
Soube, muito mais tarde, que voltara. Mais tarde ainda que o negócio do pai tinha ido à falência. Que os pais se tinham separado. Vi umas duas vezes a mãe da K com os olhos baixos, incomodados, tristes e envergonhados, e o pai como uma sombra vegetal. Um fantasma irrecuperável.
Fui sabendo, de tempos a tempos, coisas tristes da K. Que tinha graves problemas de dependência de drogas. Que passava os dias na rua com muito más companhias e vivia com a mãe. Que custava olhar para ela. Que estivera num tratamento em Espanha e engordara imenso. Que engravidara dum pai desconhecido. Que abortara. Coisas terríveis, mas nunca mais vira pessoalmente a K.
Há pouco tempo, quando regressava a casa cruzei-me com uma rapariga pálida mas morena. Frágil, disforme, que me chamou pelo nome. Só conheci a K após longos segundos. Segundos, que me pareceram horas, até encontrar uns olhos familiares a dançar ballet. Dei-lhe dois ternos beijos, comovido, quase não querendo acreditar no que via e perguntei “Que é feito de ti”. Começou a chorar. Perguntou com uma voz rouca e arrastada: “ainda te lembras de mim? Lembras-te…? Sabes? Não imaginas há quanto tempo não me davam dois beijos e perguntavam por mim”…
8 comentários:
Que ternura de texto...
Esta semana disseram-me que os amigos se fazem na escola. Depois disso, nada de confianças ou grandes decepções. Os nossos amigos da escola jamais nos decepcionam. Preocupam-nos, mas não nos decepcionam.
Beijos
Que bom que é termos quem goste de nós.
XinXin
wow...até me arrepiei...
Bj da Gaja
Uau ... Há vidas tramadas que se espantam com o facto de poderem , em certo momento, ter marcado a nosssa.
Belíssimo texto
xin xin
Se trocar o K. por um M., não lhe chamar amiga mas sim o meu 1º grande amor, esta história tem tanto de tua como de minha.
Infelizmente, já não fui a tempo de perguntar por ele...
Os amigos, mesmo que o tempo e o espaço os afaste, nunca deixarão de o ser! E felizes daqueles que um dia se reencontrarão....
beijos
Que pena...
Deve ter sido difícil também para ti.
Como estás?
e aqui ficam dois beijos...
:)
Nao vou comentar...
Apenas sorrio, porque é de facto muito intenso e intimista... Li como se fosse um segredo...
beijo
Telma
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