Em Paris pensou atirar-se de uma ponte e não se atirou. Em Praga, sitada por tanques soviéticos, procurou inutilmente um túmulo para Franz Kafka. Em Estocolmo foi levado ao chão por uma tempestade de neve e um raro transeunte ergueu-o como quem levanta um tronco de madeira abandonado. Em Nova Iorque amou duas mulheres simultaneamente. Em Quioto refugiou-se vinte e nove dias num templo mudo, comendo arroz muito branco empacotado em frágeis folhas de algas. Em Amesterdão, enquanto seguia de bicicleta junto aos canais, começou a escrever um livro na cabeça. Em Atenas a deusa feriu-o cruelmente. No Rio de Janeiro foi apanhado pela policia com um leve saco de cocaína no bolso da camisa. Em Moscovo, cidade asiática, as raparigas beijavam-se na boca enquando a vodka escorria gelada pelas gargantas. Em Bruxelas viveu o grande tédio de uma Europa moralmente falida, uma burocracia sem alma nem destino. Em Jerusalém fez dois amigos, um judeu e um árabe, e chorava baixinho a caminho do muro. Em Buenos Aires, onde foi por engano, já que o pretenso visitado há muito tinha morrido, deixou-se afogar numa meiga melancolia. Em Marraquexe perdeu-se no calor excessivo do mercado e deixou-se raptar por um desconhecido. Em Madrid teve uma amante que o traía de todas as maneiras com quem quer que fosse. Não foi a Teerão porque, sensatamente, lhe negaram o visto de turista. Em Londres foi obrigado a sair do hotel devido ao falso alarme de uma bomba explosiva. Em Roma falava italiano como um italiano, bebia licor de tangerinas morno e as mulheres passavam vestidas de beleza. Foi a Toronto para ver e ouvir Leonard Cohen, o último profeta. Em Viena, com um bom amigo, só quiz visitar o abandonado apartamento de Freud, a casa de banho desenhada por Wittgenstein e o último quarto de Beethoven onde Weininger, aos vinte e quatro anos, se retirou da vida. Não chegou a ir a Calcutá nem à Irlanda, como gostaria. Em Lisboa morreu e viveu demasiadas vezes.
Pedro Paixão
4 comentários:
Mas que belo texto! Pessoalmente, não aprecio muito a escrita de Pedro Paixão, mas este texto é lindissimo!
Beijinhos e boa semana
já li este. adorei!
:)
Só mesmo este senhor para escrever estas coisas magníficas...
Tantos sítios onde se pode viver, mas só num podemos morrer e viver mil vezes... e esse e' o chamado "Home"!
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