As palavras são um ser estranho. Foram inventadas para transmitir o que nem sempre depende delas ou de quem lhes dá vida. As palavras são reféns do tempo e da atenção. Da vontade que as queiram ou não apanhar. Tocam sem braços ou arrefecem se uma mão não as traz a si. Vão perdendo irrecuperavelmente a sua essência sem uma resposta. Morrem sós.
As palavras entram sorrateiramente ou de forma abrupta. Numa espécie de dádiva ou doença incurável. Remexem-nos os espaços como uma casa assaltada. À procura de algo que nem nós próprios sabemos. Que nem nós próprios sabemos se queremos deixar entrar. Regam terras áridas, em pousio, que se transformam, de repente, num campo de trigo acenando brilhos dourados ao vento. Ali ficando, ondulando como um mar sumarento que, por vezes, se deixa silenciar em folha de Outono. Irrecuperável.
As palavras são estranhas nas vestes, na fonética, na densidão ou amplitude, quase infinita, mas sempre vagas e insuficientes. Estranhas na sua volatilidade quase kafaniana. Estranhas na diferença de forma e tamanho, estranhas por alteram conteúdo, cor ou temperatura nas suas misteriosas junções. Estranhas por chegarem, por vezes, a ter cheiro, textura ou sabor. Estranhas por transportarem, agarradas na pele, músicas ou imagens que nos acompanham, por vezes, tempo demais. Reaparecendo, recorrentes, quando menos se espera ou deseja.
Assim como as pessoas não existem palavras iguais, pois a palavra nada é em si própria mas sim no que transporta. No Eu e Tu que encorpa (lentamente ou de repente) num Nós ou esbatendo-se, mudando o seu sentido, perdendo alcance ou exactidão.
As palavras podem perder-se despercebidas, ou tocar-nos fundo para o resto da vida. Vestem-se de caminho e andam com pés de luz. Encurtando distâncias, por vezes, depressa demais. Salpicando os sentidos de uma atenção fina e delicada. Estranha de tão próxima ou familiar. Palavras tácteis. Palavras sonoras. Palavras sumarentas. Capazes de despertar todo o desejo adormecido. Alimentando-lhe a fome de descoberta. Fazendo-o crescer a cada uma. Num lido e relido bater de asas. Até esse desejo não suportar mais qualquer palavra e transbordar. Exigindo uma explicação. Urgente. Um confronto. Inadiável.
Mas as palavras transfiguram-se para sempre, quando esse desejo não se chega a saciar por assustarem do tanto que dizem sem poderem ser ditas. Tornam-se proibidas. Ingratas. Abnegadas, que se preferem sacudi-las para longe. Mesmo que mantendo a forma, o propósito ou sentido inicial. As palavras também afastam, quem já esteve próximo. Pela sua ausência. Pelo silêncio ensurdecedor. Atenuando, por vezes, a dúvida que se prefere comodamente certeza distante. Sossegando uma espécie de tempestade, no mar alto, que não chega a dar à costa. Que teima em não acalmar mas que se sabe vir a morrer longe, entregando ao tempo essa última missão.
É aí que, por mais cuidado que se coloque nas palavras, por mais minúcia ou atenção, na sua escolha, as palavras não têm salvação e passam a ser meros castelos de areia, sucumbindo à falta de percepção do que nelas realmente mora.
As palavras são um ser estranho. Que nunca extravasam a plenitude do que nelas se colocou. O que as esvazia, por vezes, irremediavelmente. É por isso que nunca uma palavra substituirá um gesto ou um olhar. É por isso que por mais que as amemos sempre as devemos detestar por serem tão escassas e submissas. Tão incompletas e vazias. Tão assustadoramente distantes. Do que queriamos dizer. Do que assim fica, perdido. Na estranheza fria duma simples palavra.
6 comentários:
O último paragrafo é, particularmente, verdadeiro!
Fiquei sem saber o que dizer (medo talvez de usar as palavras erradas e de entrar no campo do distante, do aquém do sentido, do fora de sentido, numa irremediável estranheza!).
Beijo
s
As palavras são um ser (não acho que seja estranho), são vivas, precisam de alimento.
Eu que ando vazia de palavras, vestia estas, todinhas!
xin xin
(tu, às vezes, arrasas)
As palavras são tão estranhas que jamais conseguem transmitir as atitudes dos nossos gestos!
As tuas são FABULOSAS!
Um beijo.
Soletro os dias em cada coisa que me olha quando me sinto a vê-la. É tudo.
E não há desculpas para o que faço.
Rosa Alice Branco
Valem o que valem...
E, às vezes, são tão desnecessárias...
XinXin
o poder das palavras...
tocou-me particularmente este teu post. muito bom!
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