7.19.2007

O piano invisível

Parece-me ouvir um piano e não há piano algum aqui. Notas soltas, lentas, nem tristes nem alegres: distraídas. Notas como passinhos de criança, à procura. Por instantes julgo que me procuram a mim até entender que não procuram ninguém. Sucedem-se umas às outras de acordo com um código misterioso, revelando um segredo que não entendo. Percebo tão pouco da vida: quase tudo se me afigura misterioso, os estalos dos móveis, a quietude dos objectos, a maneira de viver das pessoas. O que esperam, o que querem, o que desejam ainda? Certos olhares, certos sorrisos. Mesmo em grupo, a conversar, afiguram-se-me sozinhas. À noite espreito o interior das casas: sofás, quadros, uma mulher a arrumar pratos num armário numa elegância de gestos que me comove. Um sujeito que passa por mim a tilintar chaves, distraído. Automóveis estacionados ao longo do passeio, vazios com esse ar terrivelmente quieto das coisas que se mexem quando não se mexem. Uma rapariga a passear o cão com uma trela que aumenta e diminui. Dois garotos pretos a rirem-se ao longe. E o piano a teimar. As notas mais complicadas agora, mais rápidas. Não há dúvida: é um piano e está aqui comigo embora não o veja.


António Lobo Antunes

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