Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo
Mal de te amar neste lugar de imperfeição
Onde tudo nos quebra e emudece
Onde tudo nos mente e nos separa.
6.23.2006
Terror de te amar
Shopia de Mello Breyner Andersen
6.21.2006
Não te deixarei morrer David Crockett
Quando era pequeno – muito pequeno, talvez oito ou nove anos – lembro-me de estar deitado na banheira, em casa dos meus pais, a ler um livro de quadradinhos. Era uma aventura do David Crockett, o desbravador do Kentucky e do Tenessee, que haveria de morrer na mítica batalha do Forte Álamo. Nessa história, o David Crockett era emboscado por um grupo de índios, levava com um machado na cabeça, ficava inconsciente e era levado prisioneiro para o acampamento índio. Aí, dentro de uma tenda, havia uma índia muito bonita – uma “skaw”, na literatura do Far-West – que cuidava dele, dia e noite, molhando-lhe a testa com água, tratando das suas feridas e vigiando o seu coma. E, a certa altura, ela murmurava para o seu prostrado e inconsciente guerreiro: “não te deixarei morrer, David Crockett!”.
Não sei porquê, esta frase e esta cena viajaram comigo para sempre, quase obsessivamente. Durante muito tempo, preservei-as à luz do seu significado mais óbvio: eu era o David Crockett, que queria correr mundo e riscos, viver aventuras e desvendar Tenessees. Iria, fatalmente sofrer, levar pancada e ficar, por vezes, inconsciente. Mas ao meu lado haveria sempre uma índia, que vigiaria as minhas feridas, que me passaria a mão pela testa quando eu estivesse adormecido e me diria: ”não te deixarei morrer, David Crockett!”
E, só por isso, eu sobreviveria a todos os embates. Banal, elementar.
Porém, mais tarde, comecei a compreender mais coisas sobre as emboscadas, os combates e o comportamento das índias perante os guerreiros inconscientes. Foi aí que percebi que toda a minha interpretação daquela cena estava errada: o David Crockett representava sim a minha infância, a minha crença de criança numa vida de aventuras, de descobertas, de riscos e encontros. Mas mais, muito mais do que isso: uma espécie de pureza inicial, um excesso de sentimentos e de sensibilidade, a ingenuidade e a fé, a hipótese fantástica da felicidade para sempre. Esse era o mundo que eu tinha entrevisto nesse dia longínquo da minha infância e que me cabia tentar defender o resto da minha vida. Então, eu era antes a índia, que não podia deixar que se apagasse essa imagem e o seu sentido e que teria de repetir incontáveis vezes ao mais fundo de mim mesmo – lá onde jazia, inconsciente, o David Crockett – que não o deixaria morrer.
Não sei porquê, esta frase e esta cena viajaram comigo para sempre, quase obsessivamente. Durante muito tempo, preservei-as à luz do seu significado mais óbvio: eu era o David Crockett, que queria correr mundo e riscos, viver aventuras e desvendar Tenessees. Iria, fatalmente sofrer, levar pancada e ficar, por vezes, inconsciente. Mas ao meu lado haveria sempre uma índia, que vigiaria as minhas feridas, que me passaria a mão pela testa quando eu estivesse adormecido e me diria: ”não te deixarei morrer, David Crockett!”
E, só por isso, eu sobreviveria a todos os embates. Banal, elementar.
Porém, mais tarde, comecei a compreender mais coisas sobre as emboscadas, os combates e o comportamento das índias perante os guerreiros inconscientes. Foi aí que percebi que toda a minha interpretação daquela cena estava errada: o David Crockett representava sim a minha infância, a minha crença de criança numa vida de aventuras, de descobertas, de riscos e encontros. Mas mais, muito mais do que isso: uma espécie de pureza inicial, um excesso de sentimentos e de sensibilidade, a ingenuidade e a fé, a hipótese fantástica da felicidade para sempre. Esse era o mundo que eu tinha entrevisto nesse dia longínquo da minha infância e que me cabia tentar defender o resto da minha vida. Então, eu era antes a índia, que não podia deixar que se apagasse essa imagem e o seu sentido e que teria de repetir incontáveis vezes ao mais fundo de mim mesmo – lá onde jazia, inconsciente, o David Crockett – que não o deixaria morrer.
Miguel Sousa Tavares (Não te deixarei morrer David Crocket)
Luar
O teu riso
Tira-me o pão, se quiseres,
tira-me o ar, mas não
me tires o teu riso.
Não me tires a rosa,
a lança que desfolhas,
a água que de súbito
brota da tua alegria,
a repentina onda
de prata que em ti nasce.
A minha luta é dura e regresso
com os olhos cansados
às vezes por ver
que a terra não muda,
mas ao entrar teu riso
sobe ao céu a procurar-me
e abre-me todas
as portas da vida.
Meu amor, nos momentos
mais escuros solta
o teu riso e se de súbito
vires que o meu sangue mancha
as pedras da rua,
ri, porque o teu riso
será para as minhas mãos
como uma espada fresca.
À beira do mar, no outono,
teu riso deve erguer
sua cascata de espuma,
e na primavera, amor,
quero teu riso como
a flor que esperava,
a flor azul, a rosa
da minha pátria sonora.
Ri-te da noite,
do dia, da lua,
ri-te das ruas
tortas da ilha,
ri-te deste grosseiro
rapaz que te ama,
mas quando abro
os olhos e os fecho,
quando meus passos vão,
quando voltam meus passos,
nega-me o pão, o ar,
a luz, a primavera,
mas nunca o teu riso,
porque então morreria.
Pablo Neruda
6.18.2006
Viagem
A chuva caía em lágrimas de cristal.
Batia nas vidraças, num choro abafado, num rumor de desgraça.
O que procuras? Pensavas, por certo, quando te liguei ...
Não procuro nada e nunca se encontra o que se procura, mas o que se encontra.
Vou sem nenhuma razão especial.
Diz-me a experiência que são essas ocasiões que fazem os amigos.
Olhares
6.15.2006
Esquadros
Eu ando pelo mundo prestando atenção
Em cores que eu não sei o nome Cores de Almodôvar
Cores de Frida Kahlo, cores
Passeio pelo escuroEu presto muita atenção no que meu irmão ouve
E como uma segunda pele, um calo, uma casca,
Uma cápsula protectora
Ai eu quero chegar antes
Pra sinalizar o estar de cada coisa
Filtrar seus graus
Eu ando pelo mundo divertindo gente
Chorando ao telefone
E vendo doer a fome no s meninos que tem fome
Pela janela do quarto
Pela janela do carro
Pela tela, pela janela(Quem é ela, quem é ela?)
Eu vejo tudo enquadrado
Remoto controle
Eu ando pelo mundo
E os automóveis correm para quê?
As crianças correm para onde?
Transito entre dois lados de um lado
Eu gosto de opostos
Exponho o meu modo, me mostro
Eu canto para quem?
Pela janela do quarto
Pela janela do carro
Pela tela, Pela janela (Quem é ela, quem é ela?)
Eu vejo tudo enquadrado
Remoto controle
Eu ando pelo mundo e meus amigos, cadê?
Minha alegria, meu cansaço?
Meu amor cadê você??
Eu acordei
Não tem ninguém ao lado
Pela janela do quarto
Pela janela do carro
Pela tela, Pela janela (Quem é ela, quem é ela?)
Eu vejo tudo enquadrado
Remoto controle
Adriana Calcanhoto
6.14.2006
O tempo não sabe nada
O tempo não sabe nada
o tempo não tem razão
o tempo nunca existiu
é da nossa invenção
Se abandonarmos as horas para nos sentirmos sós
meu amor o tempo somos nós
O espaço tem o volume
da imaginação
além do nosso horizonte
existe outra dimensão
O espaço foi construído sem princípio nem fim
meu amor tu cabes dentro de mim
O meu tesouro és tu
eternamente tu
não há passos divergentes para quem se quer encontrar
A nossa história começa
na total escuridão
onde o mistério ultrapassa
a nossa compreensão
A nossa história é o esforço para alcançar a luz
meu amor o impossível seduz
O meu tesouro és tu
eternamente tu
não há passos divergentes para quem se quer encontrar
Jorge Palma
Liberdade
Joelho
6.13.2006
Há palavras que nos beijam
Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca.
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.
Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto;
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.
De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas inesperadas
Como a poesia ou o amor.
(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído
No papel abandonado)
Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte.
Alexandre O'Neill
6.12.2006
Em todas as ruas te encontro
Em todas as ruas te encontro
Em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto, tão perto, tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura
Em todas as ruas te encontro
Em todas as ruas te perco
Mário Cesariny
Poema sobre a recusa
Como é possível perder-te
sem nunca te ter achado
nem na polpa dos meus dedos
se ter formado o afago
sem termos sido a cidade
nem termos rasgado pedras
sem descobrirmos a cor
nem o interior da erva.
Como é possível perder-te
sem nunca te ter achado
minha raiva de ternura
meu ódio de conhecer-te
minha alegria profunda.
Maria Tereza Horta
Nua
Asa no espaço
Asa no espaço, vai, pensamento!
Na noite azul, minha alma flutua!
Quero voar nos braços do vento,
Quero voar nos braços da Lua!
Vai, minha alma, branco veleiro,
vai sem destino, a bússola tonta...
Por oceanos de nevoeiro
ocorre o impossível, de ponta a ponta.
Quebra a gaiola, pássaro louco!
Não mais fronteiras, foge de mim,
que a terra é curta, que o mar é pouco,
que tudo é perto, princípio e fim.
Na noite azul, minha alma flutua!
Quero voar nos braços do vento,
Quero voar nos braços da Lua!
Vai, minha alma, branco veleiro,
vai sem destino, a bússola tonta...
Por oceanos de nevoeiro
ocorre o impossível, de ponta a ponta.
Quebra a gaiola, pássaro louco!
Não mais fronteiras, foge de mim,
que a terra é curta, que o mar é pouco,
que tudo é perto, princípio e fim.
Castelos fluídos, jardins de espuma,
ilhas de gelo, névoas, cristais,
palácios de ondas, terras de bruma,
...Asa, mais alto, mais alto, mais!
ilhas de gelo, névoas, cristais,
palácios de ondas, terras de bruma,
...Asa, mais alto, mais alto, mais!
Fernanda de Castro
6.11.2006
Fogo posto
Cerejas meu amor
A magia da escrita
A partir de certa altura comecei a escrever. Uma das vantagens de escrever é passar-se despercebido, não mudar nada nem do mundo nem das nossas vidas que continuam a sofrer, quando por outro lado, interior, subterrâneo, vai mudando tudo. Não vou dizer que para melhor porque poderia dizer com a mesma verdade o contrário.
Não ignoro o abismo entre a ideia de escrever e escrever, distância que superei com alguma ajuda, inclino-me mais para a inconsciência do que para a força de vontade.
Escrevia por escrever, às escondidas, sem dizer nada a ninguém – como se houvesse gente interessada no que fazia ou deixava de fazer e escondendo muito bem dela os cadernos que ia completando, não os trazendo para casa.
Procurava escrever precisamente o que via, o que fazia, o que passava nos estreitos limites do meu mundo, afastando para longe tudo o que não via, o que não fazia. A vida e o tédio continuam a ser o que eram, o que sempre tinham sido, só que deixavam de ser exclusivamente suportados para serem olhados e isso trazia muitas vezes um alívio, uma libertação, uma revolução aos meus dias.
As coisas actuavam sobre mim como sempre, mas eu não ficava calado, reagia escrevendo.
Ao escrever, o que é distinto do tempo em que se está a juntar as palavras sobre essa folha, passei a ser duas pessoas, uma das quais observava, por vezes espantada, a outra que ansiava pelo resultado como uma criança.
Era uma coisa muito estranha e de facto mágica.
Foi assim que tudo começou e ao mesmo tempo e pelos mesmos motivos tudo terminou.
Não ignoro o abismo entre a ideia de escrever e escrever, distância que superei com alguma ajuda, inclino-me mais para a inconsciência do que para a força de vontade.
Escrevia por escrever, às escondidas, sem dizer nada a ninguém – como se houvesse gente interessada no que fazia ou deixava de fazer e escondendo muito bem dela os cadernos que ia completando, não os trazendo para casa.
Procurava escrever precisamente o que via, o que fazia, o que passava nos estreitos limites do meu mundo, afastando para longe tudo o que não via, o que não fazia. A vida e o tédio continuam a ser o que eram, o que sempre tinham sido, só que deixavam de ser exclusivamente suportados para serem olhados e isso trazia muitas vezes um alívio, uma libertação, uma revolução aos meus dias.
As coisas actuavam sobre mim como sempre, mas eu não ficava calado, reagia escrevendo.
Ao escrever, o que é distinto do tempo em que se está a juntar as palavras sobre essa folha, passei a ser duas pessoas, uma das quais observava, por vezes espantada, a outra que ansiava pelo resultado como uma criança.
Era uma coisa muito estranha e de facto mágica.
Foi assim que tudo começou e ao mesmo tempo e pelos mesmos motivos tudo terminou.
Pedro Paixão
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