1.28.2011

As imagens


As imagens passam umas atrás das outras, aleatórias, dispersas, sem qualquer pressa ou razão. Passam apenas, por um qualquer desígnio universal, empurradas como por uma cadência plástica de projector de slides que surpreende o escuro por já não se usar, arrumado numa caixa perdida na arrecadação.

As imagens passam. Passam, com o que nunca se apercebeu e com o que nunca se verá plenamente. Passam com o que de nós lhes entregámos e com o que nunca se viveu ou viverá e no entanto está lá estampado, impregnado.

Passam, numa leveza estranha, quase poética, que se faz pesada e afunda em música no corpo, dissipando um tempo que se sente a textura, que mesmo aprisionado se agita até se revelar noutras imagens que lhe seguem automáticas, imprevisíveis, nascidas dum lugar distante mas tão próximo ao mesmo tempo.

Com o tempo despedimo-nos das coisas reais e conhecidas para abrirmos as portadas da alma a andorinhas de cal, que nos pintam as pálpebras por dentro do escuro em imagens que passam, umas atrás das outras, sem qualquer pressa ou razão.

1.20.2011

Tempo [de mudar o tempo]

Vive-se cada vez mais num tempo que nos foge como água nas mãos. Um tempo que é o mesmo que sempre foi mas que deixou de ser verdadeiramente nosso. Por mais conscientes ou atentos, deixámos o tempo partir. Permitimos que sumisse de solidão, de falta de conversa ou afecto, deixando-o à deriva e ao seu relógio que sussurra para todos sem se deixar ouvir.

Vive-se num tempo pelo qual passamos tantas vezes alheados das verdadeiras questões ou de nós próprios. Tantas vezes quase sem tempo para pensar ou questionar o mundo, desejos ou vontades, nesta estúpida velocidade que inventámos sem darmos conta.

Vive-se mais de idade mas viver-se-à melhor? Indubitavelmente menos, estou em crer. Num tempo que observa atónito a nossa loucura colectiva, correndo para tudo, competindo por falsas urgências ou velocidades tão vãs que acrescentam afinal tão pouco.

Vive-se no tempo dos assassinos do tempo. Num tempo sem tempo, arrastados na correnteza e carneirada, impotentes, perdidos, algures longe de nós. Por isso paremos. Paremos para pensar e para apreciar o que se desfoca na velocidade estonteante. Paremos e olhemos o tempo de frente e o tempo que nos rodeia - o que passou, o que se vive, o que virá. Paremos para dizer ao tempo que ainda é tempo de mudar o tempo.

1.18.2011

Eu contarei

Eu contarei a beleza das estátuas -
Seus gestos imóveis ordenados e frios -
E falarei do rosto dos navios

Sem que ninguém desvende outros segredos
Que nos meus braços correm como rios
E enchem de sangue a ponta dos meus dedos.


Sophia de Mello Breyner Andresen

1.14.2011

Amor

Deito-te no meu caderno e entorno-te como uma aguarela viva - livre. Observo os teus gestos imóveis, sentados só para mim, pendurados ao sono. Avançam e recuam com pés descalços, na lentidão da sombra, debruçados curiosos ao meu ombro. Às vezes descuidam-se desleixados, deixando a marca de um beijo no pescoço para logo se esconderem num cheiro que fica no ar. Passo-te com a mão na pele e na cicatriz das letras que te deixei. O barulho das cigarras avisa o tempo quente que já é dia e que te amo, assim como és.

Assíduos do shaker

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