1.31.2009

Elevador

Quando me falam no céu e no inferno lembro-me das ilhas Phi Phi e de Gaza. Lembro-me de um pai rodopiando no ar uma criança, a sorrir, e a de uma mãe a chorar, desesperada, sem comer para dar ao seu menino subnutrido, com olhos distantes, noutro local. Lembro-me de uma botija de oxigénio amarela. Viva, num mar repleto de peixes coloridos e esbatida na da sala de operações, entre batas cinzentonas. Lembro-me de entreajuda e de ganância. Lembro-me de médicos sem fronteiras e de teologias dogmáticas, presas às cadeiras. Obesas. Amorfas. Quando me falam no céu e no inferno lembro-me dum elevador parado, no rés-do-chão. Um elevador com duas portas, entreabertas. Lado a lado. Abertas à vontade do passageiro. Curiosamente no mesmo plano. No mesmo tempo. Curiosamente no mesmo espaço. Na mesma terra. O céu e o inferno vivem-se na terra. Vivem-se em vida, entre nós. Tudo o resto são meras conversas. Conversas de elevador.

1.30.2009

When the body speaks

Se não se passou pela obrigação absoluta de obedecer ao desejo do corpo, isto é, se não se passou pela paixão, nada se pode fazer na vida.

Marguerite Duras

1.29.2009

As últimas vontades

Deixa ficar a flor,
a morte na gaveta,
o tempo no degrau.

Conheces o degrau:
o sétimo degrau
depois do patamar;
o que range ao passares;
o que foi esconderijo
do maço de cigarros
fumado às escondidas...

Deixa ficar a flor.

E nem murmures. Deixa
o tempo no degrau
a morte na gaveta.

Conheces a gaveta:
a primeira da esquerda,
a que se mantém fechada.
Quem atirou a chave
pela janela fora?
Na batalha do ódio,
destruam-se, fechados,
sem tréguas, os retratos!

Deixa ficar a flor.

Não digas nada. Ouve.
Não ouves o degrau?

Quem sobe agora a escada?
Como vem devagar!
Tão devagar que sobe...

Não digas nada. Ouve:
é com certeza alguém,
alguém que traz a chave.

Deixa ficar a flor.

David Mourão-Ferreira

1.28.2009

Beleza

Há quem persiga o poder, o dinheiro, a fama. Eu persigo a beleza.
Não é uma escolha. É uma condenação. Sem beleza faleço.

Pedro Paixão

Vejo-a em ti. Vejo-a através de ti. Vejo-a afoita. Quase indelével, de tão intensa. Vejo-a na simplicidade de um bater de asas. As tuas asas em mim. Que me fazem sempre voar. Voar e não querer voltar. Não é uma escolha. Sem a tua beleza faleço.

1.27.2009

Sometimes


[ Close my eyes
Feel me now
I don't know how you could not love me now
You will know, with her feet down to the ground
Over there, and I want true love to grow
You can't hide, oh no, from the way I feel ]


My Bloody Valentine, Sometimes

Numerologia

Zero:
Sou um político consensual. Se à esquerda me dou com todos à direita faço toda a diferença.

Um:
Sempre gostei de ser o primeiro. Apenas fico fulo com o zero nas contagens decrescentes.

Dois
Isto de ser indicativo telefónico tem muito que contar. É que todos têm a mania de me porem os dedinhos em cima. Felizmente ando menos tonto desde que acabaram com os telefones de disco.

Três
Isto tem o seu quê de humor negro ser a terminação da conta que Deus fez e ao mesmo tempo do ex-concurso do Carlos Cruz.

Quatro
Chamem-me acelera. Chamem-me o que quiserem. Não prescindo do Audi quattro!

Cinco
Eu sei que me sou bom de apertar mas podiam variar um pouco do “dá cá mais cinco”.

Seis
Ainda gostava de conhecer o engraçadinho que me pôs a alcunha de meia dúzia. Ele não deve conhecer o número da besta.

Sete
Não sei porque razão todos têm a mania de me chamarem pecador. Então e as semanas no Tibete? E os anões não contam para nada?

Oito
Isto de ser número redondo tem muito que se lhe diga. É que tenho a vida feita num oito.

Nove
Continuo a dizer aos outros que não podem passar sem mim. Mas os tipos não me deixam tirar a prova dos nove.

1.26.2009

My secret garden

Quando preciso pensar vou até lá. Equipado para correr ou simplesmente para andar. Andar sem pressa ou direcção. Gosto de passar por entre as árvores seculares, sentir a sua sombra, o seu toque, a sua calma tranquila que se entranha na pele, o movimento lento da folhagem, que sempre me fala, que sempre me chama. As texturas dos troncos com tantas histórias escondidas. Gosto de olhar as estátuas antigas, sempre atentas, sempre belas. Lembrar lugares que me trazem memórias. Que conheço bem. Ando muito. Quase sempre com música. Que me traz sempre mensagens. Imagens. Ideias. Surpresas. Passo pelas ruínas abandonadas, repletas de graffitis, com frases e imagens sempre novas, que sempre me surpreendem. O ferro forjado corroído pelo tempo, junto ao rio. Que me faz sempre tirar fotografias com o olhar e ter vontade de trazer a máquina. Esqueço-me sempre, digo. E continuo a caminhar. Caminhar com o pensamento a fluir, dançando com a música, com os cheiros, com as imagens. Às vezes, à chuva. Não me importa nada. Até gosto mais. Gosto particularmente de andar junto ao rio, ver o seu ritmo, tão próprio, os seus reflexos mágicos, os ramos ou arbustos arrastados, na calmaria do seu sentido, a sua ondulação. Observar as aves marinhas, tão alheias a tudo, distantes, planando ao vento ou caindo a pique. Soberbas. Entram-me pelos olhos os nomes dos barcos, como palavras soltas que guardo. Que me revelam pistas de uma história que vai crescendo no caminhar. Quando preciso pensar vou até lá e vale sempre a pena. Sempre me surpreendo pela sua conversa silenciosa. Preservo-o como um local secreto. Um bem precioso. Que sempre me fascina. Que sempre me surpreende pela sua magia. Pelo seu silêncio fecundo. Um dia talvez o perca para sempre. Espero que não. Um dia talvez o revele a alguém. Até lá guardo-o carinhosamente. Tomando-o para mim. Como meu. Como o meu jardim secreto.

1.25.2009

O sal da língua

Que as nossas palavras nunca fechem a porta.
Que permaneçam longas, num sabor de sal



Escuta, escuta: tenho ainda
uma coisa a dizer.
Não é importante, eu sei, não vai
salvar o mundo, não mudará
a vida de ninguém - mas quem
é hoje capaz de salvar o mundo
ou apenas mudar o sentido
da vida de alguém?
Escuta-me, não te demoro.
É coisa pouca, como a chuvinha
que vem vindo devagar.
São três, quatro palavras, pouco
mais. Palavras que te quero confiar,
para que não se extinga o seu lume,
o seu lume breve.
Palavras que muito amei,
que talvez ame ainda.
Elas são a casa, o sal da língua.


Eugénio de Andrade

1.24.2009

O teu corpo nos teus óculos

O teu corpo numa dança lenta e suave. Parando o tempo. Alternando em ondas de contrastes, ora nítidos ora mais desfocados. Semeando imagens e pensamentos. Despertando sensações. A cada movimento. A cada espera. A cada suspiro. A urgência de despir o teu corpo. O quente e frio da sua nudez. Que apetece apertar, com força, por nunca estar suficientemente perto. Que apetece entrar para sempre. Virar do avesso. Percorrer demoradamente com as mãos. O frágil intenso do teu corpo. O silêncio branco dos teus dentes mordendo os lábios de prazer. O fugaz contorcer do nariz. O franzir, quase sério, da sobrancelha. As cógegas nos pés. O sorriso. Sim, o sorriso do teu corpo. Todo ele. Sorrindo. Chamando com os olhos. O teu corpo captado pelos teus óculos,. Abandonados, algures no quarto. O teu corpo ainda tão presente.

1.23.2009

The sea


[ I left my soul there,
Down by the sea
I lost control with you,
And living, living,
And I, living, by the sea ]


Morcheeba, The sea



Em memória da estranha maré que nos envolveu neste mar de sentidos

1.22.2009

Embalo inabalável


" Everything will be okay
... in the end

If it’s not okay
... it’s not in the end "

[unknown]

O fundo da escrita

No fundo ninguém escreve verdadeiramente para si ou simplesmente de si. Quem escreve está sempre acompanhado. Por mais só que se encontre. Por mais vazio. Por mais que não o perceba existe sempre alguém. Algo guardado inquieto ou adormecido. Algo de sopro. Algo de toque de chuva ou raio de sol. A escrita foi inventada para despertar acção. Mais ou menos consciente mas acção. Quem escreve, mesmo que seja uma história, fá-lo para quê? Qual o sentido de contar uma história? Ensinar? Retratar? Levantar a dúvida? Que sabemos nós de que quer que seja? E porque lemos? Para conhecer? Quanto saber dispensaríamos? Quanta felicidade pode morar na ignorância? No fundo quem escreve dá sinais. Liberta-os. Sinais que por vezes nem ele próprio sabe, mas sente. Que o povoam colados como uma sombra. Que lhe exigem um movimento. Por mais brando. Por mais ténue. Que lhe exigem um embalo. Mais ou menos intenso. Mais ou menos consciente. Mais ou menos directo. Escrevemos para nos descobrir ou para nos descobrirem? Sinceramente não sei. Sinceramente já não sei.

1.21.2009

Australian Open

Depois de uma noite até altas horas da madrugada a ver o Australian Open, tendo de me levantar muito cedo no dia seguinte, dou por mim a pensar no seguinte: Sabem qual é uma das coisas estúpidas (ou fantásticas) do ténis? É que o "Love means Zero"

O post que dava um post


É curioso como um certo :) isolado nos pode deixar tantas dúvidas, mesmo tratando-se de um sorriso

1.20.2009

Sonhos e pecados

Confesso que não sou muito dado a desafios, mas como me pareceu uma combinação interessante, e tentando aproveitar o dois em um, aqui ficam as respostas aos desafios da Najla e da Pólo Norte


Desafio dos 7 pecados mortais:

1. Gula: Häagen&Dazs, pois está claro
2. Avareza: embalagem grande, pois está claro
3. Inveja: acabou a embalagem grande e já cobiço a que a menina jeitosa está a comer
4. Ira: que raiva… a menina parece que não está a querer partilhar
5. Vaidade: sou um expert em Häagen&Dazs na na na na naaaa naaaaaaaaaaa
6. Luxúria: inclui a menina jeitosa e logicamente Häagen&Dazs, claro está
7. Preguiça: queres fazer o favor de telefonar para trazerem mais Häagen&Dazs


Desafio dos 8 desejos para 2009:

1. Lembrar-me dos sonhos nocturnos (é uma infelicidade não me lembrar de nenhum)
2. Nunca deixar de sonhar acordado sem chegar ao estado de Amélie Poulain
3. Cantar a um ouvido que precise que “Na terra dos sonhos, podes ser quem tu és, ninguém te leva a mal”
4. “I have a dream” mas o Martin (que era rei) já fez o favor de o dizer em público
5. “Sonho de uma noite de verão” na Grécia antiga parece-me sempre um sonho interessante (em qualquer ano)
6. Continuar a acreditar que o “sonho comanda a vida”
7. Que o ano de crise não se faça nos sonhos
8. Que as minhas leituras (não, altero antes para leitoras) consigam alternar os “Sweet dreams” com os “Sweat dreams”(só para ligar com os pecados de cima)


Nomeio quem se sinta suficientemente sonhador ou pecaminoso .)

Tempo



Slogan de uma marca de relógios

1.19.2009

Aquático

Trocava qualquer automóvel, incluindo este, por uma coisinha destas. Prefiro velas a motor. Antigos a modernos. Madeira a materiais sintéticos. Não era preciso ser muito grande. O tamanho suficiente para uma grande viagem, sem destino marcado e com muitas paragens por tempo indeterminado. Deve ser do meu signo aquático. Não sei.

Nothing's impossible

[ Even the stars look brighter tonight

Nothing's impossible

I still believe
in love at first sight

Nothing's impossible]

Depeche Mode, Nothing's impossible

1.18.2009

O rio silencioso

"Do rio que tudo arrasta, diz-se que é violento.
Mas ninguém chama violentas às margens que o comprimem"

Bertolt Brecht


Esta noite despi-me de tudo. Da palavra. Do gesto. Do pensamento e da memória. Da vontade. Quis-me vazio de tudo. Invisível até de mim próprio. Quis-me silêncio total. Fundo do mar. Quis-me mais próximo do nada para ver, talvez, se algo sobrava.

Assim me deixei, flutuando com destino incerto. Como um rio tranquilo, após a tempestade. Fazendo notar o afastamento das águas apenas nos despojos, à tona, aqui e acolá. Esta noite despi-me de tudo e sem me despedir partiste também nesse rio.

Arquitectura #6

A lisura espelhada da forma. A inconvencionalidade do original: abrindo fronteiras, cortando com as normas. O enquadramento atípico que faz sentido ao olhar. A absorção do mundo num reflexo com movimento próprio.


[The Bean, Anish Kapoor, Millenium Park em Chicago]

1.17.2009

Divagações ...

… sobre família, amizades e outras afinidades, numa conversa particularmente interessante com uma pessoa de 80 anos


1. Podemos escolher os amigos, ao contrário da família, pelo que os devemos escolher (dos que também nos tenham escolhido) como se estivessemos a escolher a família.


2. O melhor amigo que podemos ter é o que nunca nos deixe de criticar, o que esteja presente, sobretudo nos maus momentos (mesmo sem nada dizer) e o que encontre tempo para nos dedicar (por também ser importante para ele próprio ou simplesmente por nem o questionar).


3. Apesar de tudo o acima referido ninguém (familiar ou amigo) nos amará mais que os nossos pais. Mas tal nem sempre é reciproco, pois por mais que os amemos, amaremos sempre mais um filho que os pais (embora só o saibamos depois de o ter).


4. É mais sábio e confortante olhar e educar os filhos para que se comportem mais como amigos do que como filhos.


5. Faremos sempre coisas, com ambos (família e amigos), que com a idade nos arrependeremos. É reconfortante saber, no entanto, que, mesmo não as fazendo agora da mesma maneira, sabermos que as voltaríamos a fazer, naquela altura, da mesma forma.

Novela culinária

Diz o sushi para o sudare *

- Desculpa lá mas ando a sentir que me andas a enrrolar
- Esses pauzinhos tem cá uma cara de pau, não vês que são eles a pegar nas conversas daquele arroz envinagrado


* esteira de bambu

1.16.2009

Feitiço da lua

Lua és bela pela distância
Pois nela espelhas a ânsia
de meus olhos, tácteis
percorrendo-te nua


Inspirado numa lua nua que me quiz sua

Gostos


Dead can dance, Seeds of light

Gosto de viajar na música
Dos seus mundos: novos, antigos

Gosto daquela luz distante
Do infinito contido nas cores

Gosto até de me perder
No que gosto sem questionar

Simplesmente gosto
de por lá ficar

1.14.2009

As palavras são um ser estranho

As palavras são um ser estranho. Foram inventadas para transmitir o que nem sempre depende delas ou de quem lhes dá vida. As palavras são reféns do tempo e da atenção. Da vontade que as queiram ou não apanhar. Tocam sem braços ou arrefecem se uma mão não as traz a si. Vão perdendo irrecuperavelmente a sua essência sem uma resposta. Morrem sós.

As palavras entram sorrateiramente ou de forma abrupta. Numa espécie de dádiva ou doença incurável. Remexem-nos os espaços como uma casa assaltada. À procura de algo que nem nós próprios sabemos. Que nem nós próprios sabemos se queremos deixar entrar. Regam terras áridas, em pousio, que se transformam, de repente, num campo de trigo acenando brilhos dourados ao vento. Ali ficando, ondulando como um mar sumarento que, por vezes, se deixa silenciar em folha de Outono. Irrecuperável.

As palavras são estranhas nas vestes, na fonética, na densidão ou amplitude, quase infinita, mas sempre vagas e insuficientes. Estranhas na sua volatilidade quase kafaniana. Estranhas na diferença de forma e tamanho, estranhas por alteram conteúdo, cor ou temperatura nas suas misteriosas junções. Estranhas por chegarem, por vezes, a ter cheiro, textura ou sabor. Estranhas por transportarem, agarradas na pele, músicas ou imagens que nos acompanham, por vezes, tempo demais. Reaparecendo, recorrentes, quando menos se espera ou deseja.

Assim como as pessoas não existem palavras iguais, pois a palavra nada é em si própria mas sim no que transporta. No Eu e Tu que encorpa (lentamente ou de repente) num Nós ou esbatendo-se, mudando o seu sentido, perdendo alcance ou exactidão.

As palavras podem perder-se despercebidas, ou tocar-nos fundo para o resto da vida. Vestem-se de caminho e andam com pés de luz. Encurtando distâncias, por vezes, depressa demais. Salpicando os sentidos de uma atenção fina e delicada. Estranha de tão próxima ou familiar. Palavras tácteis. Palavras sonoras. Palavras sumarentas. Capazes de despertar todo o desejo adormecido. Alimentando-lhe a fome de descoberta. Fazendo-o crescer a cada uma. Num lido e relido bater de asas. Até esse desejo não suportar mais qualquer palavra e transbordar. Exigindo uma explicação. Urgente. Um confronto. Inadiável.

Mas as palavras transfiguram-se para sempre, quando esse desejo não se chega a saciar por assustarem do tanto que dizem sem poderem ser ditas. Tornam-se proibidas. Ingratas. Abnegadas, que se preferem sacudi-las para longe. Mesmo que mantendo a forma, o propósito ou sentido inicial. As palavras também afastam, quem já esteve próximo. Pela sua ausência. Pelo silêncio ensurdecedor. Atenuando, por vezes, a dúvida que se prefere comodamente certeza distante. Sossegando uma espécie de tempestade, no mar alto, que não chega a dar à costa. Que teima em não acalmar mas que se sabe vir a morrer longe, entregando ao tempo essa última missão.

É aí que, por mais cuidado que se coloque nas palavras, por mais minúcia ou atenção, na sua escolha, as palavras não têm salvação e passam a ser meros castelos de areia, sucumbindo à falta de percepção do que nelas realmente mora.

As palavras são um ser estranho. Que nunca extravasam a plenitude do que nelas se colocou. O que as esvazia, por vezes, irremediavelmente. É por isso que nunca uma palavra substituirá um gesto ou um olhar. É por isso que por mais que as amemos sempre as devemos detestar por serem tão escassas e submissas. Tão incompletas e vazias. Tão assustadoramente distantes. Do que queriamos dizer. Do que assim fica, perdido. Na estranheza fria duma simples palavra.

1.13.2009

Equívoco

Não a via há uns dez anos. É incrível como o tempo passa e faz questão de escolher alguns momentos para o lembrar. Cruzaram-se, por mero acaso, numa manhã fria mas solarenga. Ambos a correr mas por motivos diferentes: Ela, atrasada, para algo que não perguntara, ele, sem pressa alguma a preparar-se para fazer jogging. Tinha sido a sua primeira grande paixão. A primeira. E ele a dela. Muito jovens. Jovens demais.

Estava diferente: Pele cansada, um pouco mais forte, com um olhar menos perturbante, mas com a mesma voz rouca e sensual. Soubera-a casada, mas não com filhos - um com o seu nome, por acaso.

Não conversaram muito mais: as banalidades entediantes do costume. Respondia-lhe telegraficamente e estava mais interessado em saber qual seria a próxima pergunta. Finalmente, disse-lhe que estava com pressa para um compromisso e pediu o seu telemóvel para lhe ligar depois. Partiu como um equívoco. Como o equívoco daquele encontro.

Durante o jogging vieram-lhe alguns momentos seus, envoltos na música que ouvia: o seu ar de terror a ser praxada a seu lado na faculdade, as idas ao bairro alto e ao incógnito, de que tanto gostava, as tardes de praia no Guincho ou na Ericeira, o seu husqui com ciúmes a querer ferrar-lhe o dente (nunca soubera porque mudara o seu comportamento de um momento para outro – um chuto certeiro – remédio santo), a sua monumental bebedeira, em Vilamoura, quando perdeu a S. no acidente de carro, descarregando sobre tudo e todos (tempo demais), até nos seus braços (não se calando um segundo), depositando-a na cama (dizendo coisas já sem nexo mas ainda assim sem se calar), então sim, com uma resposta, virando-lhe costas. O tempo adiado que sempre souberam inevitável desde o primeiro momento. A primeira coisa que lhe ocorrera quando a vira. A primeira coisa que lhe dissera. A última palavra trocada.

É estranho como tantos momentos se apagam no tempo. Tanto tempo. Tempo demais.

Apagou o seu número no final da corrida. Apesar de ter gostado de os rever. Tinha sérias dúvidas se lhe tentaria ligar mas não a atenderia. Talvez em memória desses momentos ressuscitados. Preferia guardá-los assim, mesmo que com tantos anos. Mesmo que vindos à tona assim. Tão equivocados.

1.12.2009

Sete luas


Esta noite sete luas,
sete luas cheias,
rolaram juntas nos céus.
Dançaram nuas
sem pudor nem véus.
Vieram as estrelas,
as fadas e os anjos
deram-se as mãos
e fizeram roda
à roda da lua
sete vezes branca.
Vem, meu amor,
escuta seu canto.


Eugénia Tabosa

1.11.2009

Música com asas



The Corrs, Little Wing (Jimmy Hendrix cover)




[ When Im sad, she comes to me
With a thousand smiles, she gives to me free
Its alright she says its alright
Take anything you want from me, anything
Anything ]



Porque ser capaz de comunicar apenas com música e viajar apenas com asas é algo muito bom. Estranhamente bom.

1.10.2009

1.09.2009

Temos pena

Descobrimos que temos de mudar de emprego quando ao segundo dia depois de umas reconfortantes férias já nos apetece voltar a desaparecer indeterminadamente.

Descobrimos que temos de mudar de emprego quando nos apetece simplesmente ser despromovido em vez de ambicionarmos a mais qualquer coisa.

Descobrimos que temos de mudar de emprego quando para além do objectivo definido nos querem impor a forma e o estílo do atingir.

Descobrimos que temos de mudar de emprego quando nos alteram as regras a meio do jogo, quando dizemos um "não" redondo e nos servem "sins" disfarçados de mil e umas desculpas e faz de contas, e "não tem importância nenhuma".

Descobrimos que temos de mudar de emprego quando mantendo a postura séria e profissional, (mas não acéfala de saber pensar e por vezes discordar), se põem a nu faltas de respeito e educação, ou intromissões intoleráveis na vida pessoal.

Descobrimos que temos de mudar de emprego quando a (pseudo) "liderança" não se faz pelo exemplo ou pela equipa, mas apenas pela crítica (apenas porque se tem de criticar), pela intriga, pelo "porque sim" (sem argumentos válidos), pela tentativa de intimidação (em vez da motivação),

Descobrimos que temos de mudar de emprego quando se sobrevaloriza a forma ao conteúdo, o tempo físico aos resultados, quando as palavras simplesmente perdem a cor e já não dizem o que dizem.

Descobrimos que temos de mudar de emprego quando simplesmente se deixa de acreditar.



Não consigo fazer coisas que não acredito. Não consigo de deixar de pensar por mim próprio e de dizer o que penso. Simplesmente não consigo. Por isso, temos pena.

Erotic

Simplesmente adoro o erotismo contido nas escolhas fotográficas desta menina. Já lhe tomei umas quantas emprestadas sem ela saber. Espero que não se importe. É que são de uma sensualidade irresistivel.

1.08.2009

Meditação em passos de caminho

"O caminho faz-se caminhando"

Não digas o que és. Sê-lo.
Não te queixes da sorte. Desafia-a.
Não sigas sempre a razão. Intui.
Não te conformes com o que já sabes. Descobre.
Não aceites o impossível. Ultrapassa-o.
Não acredites em tudo o que vês. Sente.
Não faças planos. Surpreende-te.
Não penses em demasia. Caminha.

Memórias, na terceira pessoa (do singular)

Lembrou-se dos seus olhos. Ondulando por si. Estudando-o, à meia luz. Os seus olhos no corpo imóvel. Num despido deitado. Num sépia sedoso. Só os seus olhos, percorrendo-o. Nada mais.

Lembrou-se, também, de algumas das suas expressões. Achava curioso, como por vezes lhe fugia o seu rosto, mas estavam sempre presentes certas expressões. As mais subtis: desde um franzir de testa, delicioso, a uma dança exótica de mãos arabescas. Tatuadas de passado. A covinha do sorriso, onde gostava de ficar calado. No silencio, a contempla-la. Na curva ergonómica do sorriso. Nesse vale perfeito que descobrira, ao acaso, e fizera seu abrigo.

Lembrou-se do seu perfil a conduzir por entre a vasta paisagem diluida com o horizonte. A olhar a estrada de frente. A percorre-la com uma música que não cantava por pudor. Mas que se lhe escapava num ténue sussurro, pelos lábios entreabertos.

Lembrou-se do seu desenho esguio, como um lento acompanhar de pincel. Suave. Deslizando, do queixo para o pescoço. Do pescoço para o peito. Como uma gota. Engrossando aos poucos. Para logo evaporar dentro de si. Guardada algures. Preciosa.

Por mais tempo que passasse sempre guardaria essas imagens. E a do quadro, que lhe contara. Guardadas numas gramas que dizem levarmos comnosco. De peso incerto. Ora leves ora pesadas. Algures. Largadas ao vento. Algures. Espalhadas dentro de si.


Adaptação de um texto antigo. Guardado algures. Algures, na primeira pessoa (do plural).

1.07.2009

Majesty

[ And we cried and we cried
On the phone
Oh, but in my mind
You were never that all alone

Oh, you were majesty
Your roads were heavy
And your longing was cut from bone ]

Madrugada, Magesty

Amor


Frase retirada daqui

1.06.2009

Ecos de Boato

Os novos 7 pecados mortais: Boato


Diz. Diz que disse. Dizem que diz que disse. Que disse que diz que não diz. Um dizer ondulado. Um eco que se propaga, num bater de asas pesado. Difícil de suster. Um eco que se desdobra. Que se multiplica, subindo degraus. Ecoando do alto.

Diz. Diz que disse. Dizem que diz que disse. Que disse que diz que não diz. Um dizer ondulado. Terminando num riso. Um riso fino e subtil. Mas intenso. Que se entranha na vontade de falar. Na vontade do boato.


Os novos pecados mortais: Vingança em Andrómeda-News

1.05.2009

(Escrever-te) Toda




Esta noite [era capaz de te escrever] a noite toda
Decantar-te. Destilar-te
na tua mais pura essência
Toda

Comprimir-te nas suas finas paredes
escuras. Entre seu inicio e fim
Deitar-te sob as margens do papel despido
Toda

Tu na noite
Tu no papel
Tu do inicio ao fim
Tu Toda

Tu e a noite misturadas em mim
Nós três. Amarrados. Diluidos no papel
Presos por uma corda invisível. Esticada
sem perceber quem a puxa. Tu Eu Noite?

Todos. Toda

1.04.2009

Help

Pronto, pronto, retiro tudo o que disse aqui e peço encarecidamente ao comum dos mortais ou ao nerd (desculpem, génio, queria dizer génio informático), que me esclareça por que diabo não consigo receber notificações por email dos comments da maioria das pessoas que aqui comentam.

Até lá, peço desculpa a algum comment importante que fique sem resposta por não me ter apercebido.

Nurayev, o cavalo inquilino

Os teus passos. Nada mais do que os teus passos. Uma escuridão total onde tudo se apaga para os teus passos. Como se o tempo se baralhasse e simplesmente esperasse pelo próximo passo dos teus. Como se fosses descendente de Pégaso, sangue de Medusa, habituado a voar e a nunca os usares em terra firme. Como se quando tocasses o solo o mundo se curvasse em tua atenção. Rendido a teus passos. Rendido ao teu rasto de vento. Foi assim que te senti Nurayev. Assim, tão nítido, sem te mostrares. Foi assim que entraste para nunca mais partir.

Dedicatória


E pronto, parece que está pronta, para entrega, a versão provisória da tese, com dedicatória e tudo. Reza assim:


“Dedicada ao meu (des)orientador, com o qual nada disto teria sido possível”

Quer-me parecer que vou ter alguma dificuldade em a acabar. A ver vamos.

1.03.2009

Trying my best


Placebo, Meds

[ I was alone, Falling free,
Trying my best not to forget
What happened to us,
What happened to me,
What happened as I let it slip.

I was confused by the powers that be,
Forgetting names and faces.
Passersby were looking at me
As if they could erase it ]

Caneta

Caligraficamente falando seria, talvez, tinta preta de uma Montblanc. Um reflexo de alma reflectido no seu preto espelhado, deslizando. Deslizando como um cair de noite. Uma sombra, um felino esguio, deslizando para a ponta dos dedos, e destes para o aparo. Preciso. Minucioso. Escorrendo suavemente sob escrita. Absorvida no manto de neve poroso do papel, apagando o calor do momento nas quatro margens geométricas. Tinta preta como sangue morto ou como arma pronta a disparar. Preto e branco, num contraste perfeito. Guiado por uma pequena estrela polar. Lembrando o cume da montanha branca que lhe dá nome. Lembrando o pico das ideias. Lembrando o que se quer ou o que simplesmente aparece. Sem bater à porta. Sem nada dizer. Lembrado ou esquecido numa caneta de tinta preta.

1.02.2009

Eu já...

Encontrei este desafio aqui e achei piada ao exercício. Deixo-o aqui para quem quizer exprimentar...


Eu já subi num balão de ar quente e foi das melhores sensações que já vivi
Eu já soube tocar relativamente bem e até já toquei em público
Eu já viajei de caixa aberta e velejei num barco à vela
Eu já fiz a PGA, tirei um 20 a História e fui a uma oral de Matemática para defender um 18
Eu já fiquei preso numa ilha por causa do mau tempo
Eu já adormeci num barco insuflável e acordei no mar alto
Eu já estive quase quase para ir morar na Finlândia por dois anos
Eu já vivi momentos que considero valerem uma vida
Eu já me apeteceu fugir e largar tudo
Eu já perdi o meu melhor amigo de infância por overdose
Eu já tive uma namorada espanhola
Eu já fiz várias vezes directas para acabar um livro
Eu já vi ao vivo a maioria dos meus grupos musicais favoritos
Eu já me emocionei com uma imagem ou um olhar
Eu já fiz coisas de que não me orgulho
Eu já vi coisas que preferia nunca ter presenciado
Eu já fui tímido
Eu já fumei um Montecristo nº4
Eu já estive deitado numa praia deserta a contemplar as estrelas
Eu já apanhei uma valente bebedeira
Eu já tive saudades de morte de alguém que já partiu
Eu já dei tudo a uma pessoa e acho que ela nem percebeu muito bem
Eu já tive um jardim secreto
Eu já tirei um curso de cozinha e comprei facas de sushi
Eu já tive um gato com muito carisma
Eu já senti a ténue linha que separa os dois mundos
Eu já tive amigos muito chegados que já pouco ou nada me dizem
Eu já perdi pessoas importantes sem chegar a perceber bem o porquê
Eu já estudei mais tempo depois do que durante a faculdade
Eu já joguei ténis e pratiquei natação
Eu já fui assaltado com uma faca
Eu já perdi a conta às multas de estacionamento
Eu já peguei no carro e parti para parte incerta
Eu já ofereci presentes que me deram mais prazer do que qualquer um que tenha recebido
Eu já mudei uma fralda
Eu já tive momentos perfeitos
Eu já tive o melhor chefe do mundo e a pior
Eu já trabalhei só com mulheres e não recomendo
Eu já disse à minha massagista que fujo com ela e começo a acreditar
Eu já fui o último a sair de uma sala de cinema e já fui ver o mesmo filme duas vezes seguidas
Eu já plantei cactos e ervas aromáticas no pátio
Eu já fiz uma viajem de 3.500 kms de carro em trabalho
Eu já tive um bar de praia favorito
Eu já apanhei um susto de morte ao ver um grupo de amigos capotarem o carro para fora da estrada
Eu já fui orador numa conferência
Eu já escrevi num livro de reclamações e coisas muito sentidas que nunca chegaram ao destinatário
Eu já me enganei a mim próprio
Eu já me perdi e voltei a encontrar
Eu já participei numa festa Havaiana e num baile de máscaras venezianas
Eu já não tenho praticamente contacto com nenhum colega de faculdade
Eu já fui convidado por uma amiga para as danças de salão sem saber dançar nada de jeito
Eu já me apaixonei vezes demais
Eu já senti o poder magnético de estar frente a frente a um quadro original que nos diz muito
Eu já tive um dois cavalos de que guardo grandes recordações
Eu já fui a uma festa da espuma e cheguei a casa enrolado numa toalha de praia
Eu já andei horas à chuva
Eu já ando para tirar um curso de fotografia e de Photoshop há uma catrefada de tempo
Eu já me estendi um pouco sem ter dado por isso

1.01.2009

Tempo

Tempo — definição da angústia.
Pudesse ao menos eu agrilhoar-te
Ao coração pulsátil dum poema!
Era o devir eterno em harmonia.
Mas foges das vogais, como a frescura
Da tinta com que escrevo.
Fica apenas a tua negra sombra:
— O passado,
Amargura maior, fotografada.

Tempo...
E não haver nada,
Ninguém,
Uma alma penada
Que estrangule a ampulheta duma vez!

Que realize o crime e a perfeição
De cortar aquele fio movediço
De areia
Que nenhum tecelão
É capaz de tecer na sua teia!


Miguel Torga

Assíduos do shaker

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